Mutilação não é tradição, é violência

por Rachel Costa

Três sobreviventes da mutilação genital feminina contam como tiveram suas vaginas destruídas. Leia e multiplique por 200 milhões. Sim, já há uma população equivalente à do Brasil de mulheres mutiladas

O primeiro sentimento de Ifrah no dia em que sofreu mutilação genital feminina foi a ansiedade. “Era como aguardar o presente de Natal”, compara ela, que tinha oito anos à época. Os adultos festejavam e as meninas, nove ao todo, tinham recebido presentes. Nenhuma delas sabia exatamente o que as esperava, mas sabiam que era algo importante, que ia mudar as suas vidas. A expectativa só deu lugar ao medo quando elas perceberam o engodo: o que as reunia ali não tinha nada de legal. Pelo contrário: era brutal, e pior, inevitável. Não havia grito nem choro capaz de evitar o desfecho. Com as mãos e pernas imobilizadas, ela e as outras meninas tiveram suas vaginas primeiro analisadas, depois, cortadas, sem consentimento nem anestesia. O corte seco e frio fez Ifrah chorar.

A menina já não suportava mais, mas ainda não havia acabado. Com agulha e linha, costuraram-lhe a pele que restou, fazendo com que, em vez dos pequenos e dos grandes lábios, a vagina se tornasse uma imensa cicatriz, fechada de ponta a ponta, interrompida apenas por um pequeno orifício deixado para sair a urina. Com as pernas amarradas, foi devolvida aos pais e assim permaneceu por semanas, deitada no chão, sofrendo em silêncio, esperando por uma cicatrização que nunca veio. Além das marcas que leva no corpo (desde o xixi que sai devagar às dores insuportáveis no período menstrual), há ainda outras, que leva na memória. Quando se lembra daquele dia, Ifrah se arrepia, a voz embarga, a feição leve some e ela se torna econômica nas palavras: “Doeu de forma insuportável. Só de me lembrar, ainda me dói”, diz ela.

A mutilação genital feminina (MGF) é uma prática brutal travestida de tradição que remonta à Grécia e ao Egito antigos, e que sobreviveu em várias culturas como forma de controle da sexualidade feminina. A história de Ifrah aconteceu na Somália, onde 98% da população feminina é mutilada, mas a MGF está presente em países tão distintos quanto Egito, Indonésia, Colômbia, Estados Unidos ou Reino Unido. Muitos deles, inclusive, têm leis proibindo a prática, mas ela perdura mesmo assim, às escondidas e sem dar sinais de arrefecimento.

Pelo contrário, apesar de maior consciência sobre a existência da MGF, pela primeira vez nas últimas décadas, houve aumento no número de casos registrados. As estatísticas divulgadas pelo Unicef em fevereiro de 2016 mostraram 70.000 casos a mais que em 2014. O órgão acredita que a razão esteja em uma combinação entre crescimento da população nos países onde a prática é predominante e uma melhor coleta de dados.

Fato é que, em todo o mundo, 200 milhões de meninas e mulheres vivam com as marcas deixadas pela mutilação genital. Isso equivale a toda a população do Brasil.

“Não é algo restrito à África, como muitas pessoas imaginam. É um problema global e assim deve ser entendido”, fala Ifrah. Só nos Estados Unidos, cerca de meio milhão de mulheres passou pelo procedimento. Na Europa, estima-se que anualmente outras 180.000 corram o risco de sofrer a mutilação.

Ifrah Ahmed, hoje com 26 anos, vive na Irlanda, país que a acolheu há 10 anos, quando ela decidiu deixar a Somália. Assim como ela, cerca de 16 mil mulheres e meninas chegam a países europeus todos os anos, em busca de refúgio contra a mutilação ou suas consequências. Ifrah, além de sobrevivente, é hoje ativista contra a prática e sonha com um mundo no qual nenhuma menina seja submetida à mesma violência que ela sofreu. Apesar da dor que carrega, Ifrah se considera uma mulher de sorte: sabe bem que seu destino podia ter sido outro, que poderia não ter resistido à mutilação, como aconteceu com uma de suas colegas, que teve uma hemorragia e morreu dias depois da cerimônia.

Cicatrizes eternas
Quando se fala em mutilação genital feminina, fala-se de diferentes procedimentos. Ifrah passou pela forma mais severa, conhecida como “tipo 3": remoção do clitóris, dos grandes e dos pequenos lábios e, posteriormente, a junção dos dois lados da vulva sobre a vagina. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 10% das mulheres mutiladas sofreu essa forma de mutilação. Mas mesmo os métodos considerados menos agressivos também deixam suas sequelas, conta Mariya Taher, uma americana de 33 anos, que passou pela mutilação de tipo 1 (retirada do prepúcio, a pele que protege o clitóris) ainda criança, durante uma viagem de férias à casa dos avós, na Índia. Descendente dos Dawoodi Bohras, uma das minorias muçulmanas indianas, Mariya só conseguiu compreender exatamente o que era já adulta. Na infância, ela só sabia que todas as mulheres da família também tinham passado por aquilo, mas não entendia a razão. 

Foi quando percebeu o que havia por trás da “tradição”, que sentiu o incômodo de descobrir-se parte de um ritual de violência e desrespeito ao corpo feminino. “Há coisas que nunca poderei saber, como por exemplo, como isso mexeu com o prazer que sinto durante o sexo”, fala ela. Além disso, há a estranha sensação de dar-se conta de que familiares e comunidade foram todos coniventes com a violência, mantida como segredo entre eles. “Até bem pouco tempo, a mutilação feminina entre os Bohras era um tema invisível. Quando quis saber mais sobre o assunto, achei coisas sobre países africanos, sobre a Índia, tinha apenas um pequeno estudo”, diz ela, que decidiu então, por conta própria, estudar e escrever sobre o tema e, posteriormente, criar uma organização, a Sahyio, dedicada a lutar pelo fim da MGF entre os Bohras.

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É no silêncio, que a mutilação genital feminina encontra as condições perfeitas para se perpetuar. Independentemente do país ou do tipo de corte, há um traço comum: pedir às vítimas que não falem sobre o assunto. Mulheres de diferentes cores, credos e níveis sociais vivem a mesma dor, mas sofrem caladas, sem oportunidades de refletir sobre o que lhes aconteceu. “Filhas de embaixadores, advogados e médicos também são afetadas. Como muitas outras formas de violência de gênero, a MGF ultrapassa divisões de classe social, nível educacional, religião e etnia”, alerta Natalie Kontoulis, porta-voz da rede EndFGM, que reúne 15 organizações europeias dedicadas a combater a mutilação genital.

Filha de pai engenheiro e crescida em uma família com boas condições financeiras Leyla Hussein sabe bem dessa realidade. A menina poliglota que viveu em diferentes países – Somália, Itália, Arábia Saudita e Reino Unido – não foi poupada da barbárie da mutilação genital, mas durante anos viveu sob um disfarce quase perfeito de normalidade. Os amigos europeus não suspeitavam que ela tinha passado pelo procedimento e, durante muito tempo, ela mesma negou a traumática experiência. Até que um dia, aos 22 anos, já mãe, ouviu, durante uma consulta ginecológica, a pergunta da qual havia fugido durante tantos anos: ela era somali, um país onde a mutilação é algo recorrente, o que sabia sobre MGF? “Eu disse à profissional que me atendia que sim, que era verdade, que eu sabia, mas que estava ok…”. Mesmo assim, a enfermeira insistiu para que Leyla assistisse um material educativo sobre o tema. Foi diante das histórias e das imagens de outras sobreviventes que Leyla desmoronou. Não estava nada bem.

Por mais que racionalmente ela negasse as lembranças, elas seguiam lá: o dia ensolarado, a festa, o corte, a dor. Seu corpo recordava vividamente cada milímetro daquela experiência. “Tive uma gravidez terrível. Bloqueava a cada exame ginecológico e tive uma depressão forte. Só com a ajuda dessa profissional comecei a perceber que tudo aquilo eram memórias que o meu corpo guardava da mutilação”, diz Leyla, hoje uma psicoterapeuta de 35 anos que dedica sua carreira a ajudar outras sobreviventes da MGF a desarmar esse campo minado que são as lembranças da violência sofrida na infância.

Maternidade
Uma das “bombas” mais difíceis de desarmar, e uma das mais importantes, explica Leyla, é o trauma de saber que são as mães e as avós que dão o consentimento para a mutilação das filhas. Ela diz que em um primeiro momento a sensação é de raiva. Como a mãe ou a avó, que também passaram por aquilo, podem permitir que o ato se repita com suas filhas. “Só superei essa fase quando percebi que, assim como eu, a minha mãe também era uma vítima. A pressão da sociedade sobre as mães para que as filhas sejam mutiladas é muito grande”, conta ela.

Por isso, o fim da mutilação genital feminina passa por uma mudança de paradigma que envolve todos, não apenas as mulheres. Homens, crianças e idosos, todos precisam ser convidados a repensar o porquê da permanência de uma tradição tão brutal. “Conscientemente, ninguém quer machucar a filha. A mutilação genital acontece porque ela é uma norma social nessas comunidades. Ela continua porque sempre aconteceu e ninguém nunca se perguntou o porquê”, diz Julia Lalla-Maharajh, fundadora do Orchid Project, organização não governamental dedicada a combater a prática. “Mas o interessante nas normas sociais é que elas podem ser mudadas. Você pode sair de uma sociedade na qual todas as mulheres são cortadas para uma em que nenhuma delas é cortada”, completa.

É difícil, mas não é impossível. Mais de 7.500 comunidades na África já passaram por essa transição e optaram por abandonar a MGF. “Ter uma lei, ter um governo contrário, tudo isso é importante, mas nada disso é eficaz se a comunidade não decide mudar a norma social”, fala Julia. Hoje há legislações condenando a mutilação genital feminina em pelo menos 42 países, mas a legislação, sozinha, é inócua. “Aqui no Reino Unido, por exemplo, acreditamos que ainda haja comunidades praticando a MGF, mas é difícil descobrir. Eles sabem que é ilegal e sabem que se falarem sobre isso estão colocando em risco um amigo ou mesmo um familiar”, avalia Sara Browe, coordenadora de campanhas da IKWRO (sigla em inglês para Organização para os Direitos da Mulher Iraniana e Curda), que atua no Reino Unido e no Oriente Médio.

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A mudança efetiva só acontece quando há uma sinergia entre legisladores, governos, opinião pública e sociedade. Ainda assim, a empreitada não é fácil, como mostram as experiências de Ifrah, Mariya e Leyla. Ifrah, que atualmente assessora o governo somali na criação de uma lei para criminalizar a MGF, muitas vezes encontra resistência em sua terra natal. “Há quem diga que só estou fazendo isso porque sofri lavagem cerebral na Europa”, fala ela. Mariya recentemente viu-se ameaçada de ação judicial após republicar na página da organização que coordena, uma carta destinada à comunidade Dawoodi Bohra de Sydney, na Austrália, desencorajando a MGF. Leyla tem, no mundo real, seu endereço protegido pela polícia e, no mundo virtual, uma população de trolls que a acompanha onde quer que ela vá. “Tem dias que acordo com dezenas de tuítes no meu telefone. Quando isso acontece, eu já sei: são eles”, diz Leyla.

Nada disso, porém, lhes tira a vontade de seguir lutando por um mundo em que histórias como as delas não se repitam. “Meu objetivo é, em dez anos, ver o mundo livre da mutilação genital feminina. Parece ousado, mas se você pensar no HIV, ele também deixou de ser tabu para ser algo globalmente falado em pouco tempo”, fala Ifrah. “Precisamos reconhecer: MGF não é cultural, não é tradição, é um abuso, um dos piores que pode acontecer com meninas, e como tal, precisa ser combatido”, fiz Leyla.

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Créditos

Imagem principal: Reprodução Female genital mutilation / ONG WeAreEQUALS

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