por Milly Lacombe
Tpm #163

É possível acordar apaixonado sem que exista uma outra pessoa ao seu lado na cama

Eu tinha 13 anos quando conheci Sérgio, meu primeiro namorado. Ele era três anos mais velho e um dos meninos mais bonitos e populares do colégio. São-paulino fanático, era o melhor boleiro que eu já tinha visto jogar. Namoramos por três anos, ele frequentou a minha casa e eu a casa dele. Com 16, caí de paixão por minha melhor amiga e vivemos um caso de amor maluco que durou muitos verões. Depois dela, outro na-morado e assim a vida seguiu, um relacionamento atrás do outro, todos se intercalando sem nem um dia de intervalo. Mas numa tarde ensolarada de primavera em 2015 o inimaginável aconteceu: eu me vi sozinha.

Até ali, eu ainda não tinha passado uma noite de sexta-feira, ou um fim de semana, sem ter um ombro sobre o qual deitar, ou unhas que coçassem minhas costas (uma mania muito antiga). Era apenas natural, eu imaginava, que houvesse um tipo de área na qual eu jamais fracassaria: a afetiva. Como desde os 13 houve fartura de pretendentes e multidões apaixonadas por mim, eu podendo escolher com quem ficaria (na quarta série Luís Eduardo e Flávio chegaram a se estapear pelo direito sagrado de me namorar) era apenas lógico supor que a vida seguiria assim: meu enorme poder de sedução era invencível. Para deixar tudo ainda mais poético, eu não era a abandonada, mas aquela que abandonava. Afetivamente eu me tinha na mais alta conta e me refestelava num lugar de enorme conforto.

 

O sentido da vida

Claro que nas demais áreas da vida – financeira, profissional, moral – eu estava acostumada a fracassar sonoramente, mas nem havia tanto problema porque era voltar para casa e tinha ali alguém que me amava me esperando e um colo onde eu podia deitar e entender o sentido da vida.

Até que um dia tudo desmoronou, e o único ambiente dentro do qual eu me reconhecia como pessoa forte e saudável ruiu. Sozinha, tive que me olhar no espelho e tentar entender quem eu era sem que houvesse um outro para me legitimar.

Nessa busca maluca pelo ser que me habita decidi passar uma temporada de solidão nas montanhas. Peguei alguns livros, fiz uma playlist no Spotify (uma obra ainda em andamento, mas que se aproxima da perfeição), comprei muitos vinhos e me mandei para uma cabana na Serra da Mantiqueira. Se era para ficar sozinha, então eu ficaria retumbantemente sozinha.

As primeiras noites foram de caos, até porque logo de cara uma tempestade sem precedentes quase arrancou a cabana do chão durante a madrugada. Enquanto isso, dentro de mim havia uma multidão que tentava provar que aquilo jamais daria certo, e que eu deveria pegar minhas coisas e voltar para a cidade, onde poderia encontrar uma nova namorada e, outra vez, casar. A mente, eu descobriria, só existe quando é capaz de complicar todas as coisas, então ela faz isso em nome da própria sobrevivência. E ela me dizia que no meio do mato não havia a mais remota possibilidade de me apaixonar, ou, melhor, de que alguém, que não fosse um quadrúpede, se apaixonasse por mim. Mas eu resisti e insisti porque no meio da multidão de vozes havia uma outra que dizia baixinho: “Fica”.

Não demorei a entender o que Joseph Campbell queria dizer quando escreveu: “Passar por uma transformação de consciência é uma experiência terrível”. De fato, a travessia que nos conduzirá ao outro lado é sombria porque todos os diabos estão dentro da gente e, no silêncio e na solidão, eles se agigantam.

Só que é nessa hora exatamente que começamos a entender que o céu também está dentro, e que só podemos ser livres no instante em que aceitarmos a ideia de que a liberdade e a incerteza não podem se separar. Liberdade, afinal, é mesmo o que disse David Foster Wallace: educar o pensamento, e nada além disso. Porque é a partir daí que se experimenta a vida sem angústias e alcançamos a tal da paz que transcende todas as coisas.

Durante a travessia a gente percebe também que é possível amar sem ter um objeto a quem se ame. É possível acordar apaixonado sem que exista uma outra pessoa ao seu lado na cama. É possível sair animada para comprar os ingredientes de um jantar que você vai preparar apenas para você. É possível fazer uma festa e dançar por horas sem que haja outros convidados. É possível chorar de emoção olhando as estrelas sem ter uma outra pessoa do seu lado a quem você possa mostrar Júpiter e falar sobre constelações. É possível se perder de amor pela criança que você foi e por todos aqueles que ajudaram você a chegar no lugar onde você está. Mas talvez mais surpreendente é que seja possível admirar cada um dos seus fracassos e tropeços.

 

Como qualquer outro

Ao descer do pedestal em que me coloquei, pude enxergar quem realmente sou, e ver que havia ali um ser humano tão lindo e sofrido e machucado e vulnerável e maravilhoso como qualquer outro. “Todos nós compartilhamos da mesma provação”, escreveu Campbell. “Carregar a cruz do redentor. Não nos momentos brilhantes das grandes vitórias, mas no silêncio do nosso desespero.”

Sozinha com a floresta por testemunha algumas dessas coisas que a gente lê por aí começam a fazer sentido, como por exemplo uma frase de James Joyce que um dia anotei: “Qualquer objeto olhado intensamente pode se tornar a via de acesso aos deuses”. É o que, se não me engano, ele chamou de suspensão estética. E eu vi isso em vacas pastando e seriemas cantando e em alfazemas e flores e plantas e no cheiro da grama molhada.

Até que finalmente um dia o céu ficou completamente azul, eu enxerguei o sol e deitei no deck de cruzetas sorrindo. Não tinha você e ainda assim eu estava feliz. Porque, embora não tivesse você, tinha eu. Tinha eu inteira pela primeira vez. Eu gostei do que vi. Gostei de mim, gostei do que sentia, gostei das dores e dos amores e da existência que ali nascia.

“A vida não tem sentido. Cada um de nós tem sentido e a gente dá isso à vida. É perda de tempo ficar fazendo a pergunta quando você é a resposta”, escreveu Campbell, que, como vocês podem perceber dado o excesso de citações, foi um dos autores que levei para minha temporada na roça. Morrer foi difícil, mas renascer foi lindo.

Créditos

Ilustrações: Renata Miwa

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