por Milly Lacombe
Tpm #126

A 1ª mulher a comandar a Polícia Civil do RJ faz questão de exaltar o lado feminino do poder

Enquanto esperava na antessala, conseguia ver engravatados indo e vindo e referindo-se a ela como “a chefe”. “Falou com a chefe?” “A chefe autorizou?” “Tenho que ver isso com a chefe.” O clima no ambiente era leve e bem-humorado, o que, por instantes, me fez esquecer que estava na sede da polícia civil do Rio de Janeiro, dentro de salas blindadas, prestes a entrevistar uma mulher com 14 ameaças de morte em registro. Era pensar nisso e começar a olhar para os lados.

Lá fora, a escuridão prematura e a chuva torrencial deixavam tudo um pouco mais estranho. Finalmente, minha paranoia e eu fomos convocadas a entrar. Martha Rocha tem apenas 1,52 metro, mas a incrível habilidade de se equilibrar em saltos bastante grandes. Me cumprimenta estendendo a mão e sorrindo, assim como estavam sorrindo todos os que entraram e saíram de sua sala antes de mim. Seguindo a orientação paterna de “se não tem nada de bom para falar, não fale nada”, finjo não ver a flâmula do Vasco sobre a mesinha, bem ao lado de uma enorme imagem de Nossa Senhora, e me aboleto no sofá à sua frente.

Mulher de família

A “chefe” está usando um vestido estampado em preto e branco que parece tão elegante quanto confortável. O cabelo está impecável, e são seis da tarde de uma sexta-feira de raios e trovões. Minha aparência é bastante adequada ao dia, ao clima e ao horário; a dela, nem um pouco. Enquanto eu voava de São Paulo ao Rio para ir encontrá-la, Martha entrava e saía de meia dúzia de reuniões e tomava uma dúzia de decisões estratégicas – apenas mais um dia de trabalho no front.

Peço para ligar o gravador, e quando ela começa a contar sua história fica fácil esquecer, embora não devesse, que estou falando com a primeira mulher a chefiar a polícia civil do Rio de Janeiro, cargo que é dela há um ano e oito meses; sob sua tutela, estão hoje quase 11 mil homens. Ou, como colocou o taxista que me levou até ali: “Você está indo falar com a todo-poderosa da polícia do Rio”.

Martha, 52 anos, nasceu e cresceu na Penha, com pais portugueses e filha do meio de três irmãos: Horácio e Fátima, todos taurinos e estudantes de escolas públicas. Da infância simples, só tem boas memórias. Profissional de carreira, já foi escrivã, fez parte da primeira geração de delegadas do país e foi também corregedora.

Cuidou de casos tão populares quanto dilacerantes, como o do sequestro do ônibus 174 e o do assassinato do menino João Hélio. Ainda assim, não se deixou levar pela miséria humana. Ou, pelo contrário, não vem armada com a arrogância de achar que somos muito diferentes uns dos outros. Parece concordar com Terêncio, o poeta romano que disse: “Sou homem, não considero nada estranho a mim”. Mas entende que sua profissão envolve investigar e prender criminosos, e isso faz com maestria. Alguns dias depois de nossa entrevista, ela passaria uma madrugada e um dia inteiros chefiando e acompanhando a bem-sucedida operação que ocuparia a comunidade do Jacarezinho, na zona norte do Rio.

Foi nomeada para a chefia da polícia do Rio em fevereiro de 2011, em meio a uma das maiores crises pelas quais já passou a instituição – dias antes de sua indicação, 45 integrantes das polícias civil e militar do Rio foram presos acusados de corrupção, participação em milícias, desvios de armas etc. etc. etc. Com a operação deflagrada, caiu o antigo chefe da polícia, e Martha Rocha foi para o centro do palco. Atualmente, entre a instalação de uma UPP e outra, anda envolvida com um investimento de R$ 72 milhões que levará o nome de Cidade da Polícia: 15 delegacias especializadas, auditório, praça de esportes, área de convivência, uma única central de flagrantes, espaço para perícia, cidade cenográfica para treinamento, heliponto – uma espécie de Projac da polícia, modelo absolutamente novo, com forte investimento em tecnologia e que ficará pronto em abril de 2013.

Durante pouco mais de três horas conversamos a respeito de vida, morte, maternidade, machismo, feminismo, nossa missão nisso tudo e, claro, poder.

Martha, que nunca casou, revela sua incrível história de amor com a vida e com a polícia – que, como ela gosta de lembrar, é, antes de qualquer coisa, um substantivo feminino.

Tpm. Você planejou sua carreira?
Martha Rocha. Não faço planos. Todas as vezes que tentei organizar minha vida, ou desejei muito uma coisa, quando consegui foi ruim. Isso é fé. Sou católica mesmo: vou à missa todos os domingos, tenho uma fé imensa em Nossa Senhora, faço todos os rituais da Igreja, faço jejum... De verdade, acho que estou no mundo para ser feliz. E preciso de muito pouco para isso.

Como se manifesta essa fé no dia a dia? Em vez de ficar sofrendo porque nesse momento não tenho namorado, fico feliz porque sou chefe da polícia civil. Não dá para ser chefe da polícia e ter namorado [risos]. De certa forma, conduzi minha vida assim. E sempre trabalhei demais. Às vezes, o plantão estava pegando fogo e eu ligava para casa e dizia: “Mãe, acende uma vela, hoje está muito difícil”. Aí um dia meu pai disse: “Martha, não liga mais, porque sua mãe não dorme, fica rezando, e isso não vai adiantar nada. Se vira aí”.

Não quis ter filhos? Não nasci para ser mãe. Maternidade nunca foi objeto de desejo na minha vida.

A polícia é a sua vida? A polícia é apaixonante. Não há como não se apaixonar pela polícia.

Seu primeiro dia de trabalho foi apaixonante? Foi tenebroso. Eu tinha 24 anos, saindo da Justiça, onde trabalhava com um juiz e em outro ambiente. Aí, quando cheguei [à delegacia], chegou junto comigo um caminhão com latões de comida, o delegado estava numa reunião, fui atendida pelo escrivão, que me falou as piores coisas a respeito da profissão, a carceragem era metade homem, metade mulher, 200 pessoas onde cabiam cem, os presos gritando, não havia banheiro feminino e a perspectiva era dormir sobre uma mesa porque não havia onde dormir.

Mas você resistiu e mudou as coisas aos poucos. Aos poucos. Tinha sido professora e usei os métodos. Queria chegar e ouvir “bom dia”, “boa tarde”, sabe? Mandei o homem fechar a camisa, dizer “por favor”. Eles riam, mas começaram: “Bom dia, Martha”. É a maneira como você fala, e também o fato de eles verem que eu trabalhava muito sério. Começaram a me levar a sério.

Quanto tempo depois virou delegada? Sete anos. E, cada um do seu jeito, foram me recebendo bem. No meu primeiro plantão como delegada, o delegado titular passou na minha sala e disse: “Não sai para almoçar que hoje vou te levar para almoçar”. São pequenos gestos, sabe?

E tratavam você como igual? Um dos sintomas do machismo é o cavalheirismo. Ao mesmo tempo que conseguem ser rudes, são cavalheiros. Primeiro teve a época em que chegavam na delegacia e falavam: “Posso falar com o delegado?”. O policial, ironicamente, apontava a sala em frente. A pessoa entrava, me via e dizia: “O delegado?”. E eu: “Sou eu”. Ela não sabia o que fazer.

Já foi vítima de machismo explícito? Em 1993 fui escolhida para ser diretora do departamento de polícia especializada, tinha 33 anos. Quando souberam que era eu, disseram que iam entregar seus cargos, que não ficariam subordinados a mim. Tomei posse, convoquei uma reunião, entrei na sala com aquele bando de homens e disse: “Olha, quero dizer que minha nomeação é irreversível”. Claro que primeiro me certifiquei de que minha nomeação era mesmo irreversível. “E acho bom entregarem seus cargos, porque vou tirar um bocado de gente daqui.” Levantei e fui embora.

Eles entregaram? Estou esperando até hoje.

E o cavalheirismo? Uma vez o policial entrou na minha sala e disse: “Doutora, teve um acidente de trânsito com vítima, mas é melhor a senhora não ir porque o corpo tá muito ruim”. E eu: “Mas não lhe perguntei isso. Eu vou”. Quando cheguei, o corpo estava esfacelado e ele fez questão de levantar o pano para eu ver bem de perto. Hoje sei que ele queria apenas me preservar daquela cena. Era um gesto de cavalheirismo, que não deixa de ser machismo, mas sou capaz de lidar melhor com isso agora. Naquela época, havia o compromisso de marcar nosso território.

Que carro você tem? Um [Chevrolet] Classic 2006. Carro, para mim, é transporte, não condição social. Adoro viajar, então tenho que escolher: ou troco de carro todo ano, ou viajo. Sabe do que vou sentir falta quando sair da chefia [da polícia civil]? Dos meninos que andam comigo. Eles são mais que motoristas. Tenho relações muito antigas na vida, amizades de 35 anos, em que sou madrinha de casamento, madrinha do filho… Gosto das coisas duradouras, perpetuadas. Não é ter e consumir, mas “vamos construir relações”.

Tem coisas que a gente só aprende em família? O grande erro hoje é as famílias acharem que só a escola vai educar. Não vai. Meu pai dizia: “Se filho meu apanhar na rua, quando chegar em casa vai apanhar de novo”. Ou: “Se souber que um filho apanhou e o irmão não ajudou, apanham os dois” [risos].

Quando pensa na infância, que memórias vêm? A gente tinha pouco dinheiro, mas era uma vida confortável. Em casa tudo era dividido. Uma bicicleta para os três, minhas roupas e as de minha irmã eram as mesmas, o vestido da primeira comunhão foi o mesmo. Nunca tive uma boneca, porque quando chegava o Natal a gente ganhava aquilo que era mais importante do que boneca: sapato, roupa. Mas foi sem traumas e com muito amor, e acho que por isso não vejo necessidade de fazer análise. Sou às vezes um pouco rude, mas acho que analista é para quem não tem um bom amigo para te ouvir. Eu digo isso para uma amiga e ela diz: “Não é nada disso, Martha!”.

O que mais te marcou? Meus pais sempre foram muito amorosos e gentis. Detesto homem mal-educado porque meu pai era dono de padaria, só tinha até a quarta série, mas era um homem educadíssimo. Cresci vendo meu pai comprar presente para minha mãe no Dia dos Namorados. Era um feminista sem saber. Ele dizia: “Vocês têm que estudar, porque quando não quiserem mais saber de marido podem mandar ele embora”. Estudo sempre foi muito valorizado em casa.

E você não decepcionou. Fui professora primária, fiz faculdade de direito, aí fiz concurso para a Justiça, virei funcionária da Justiça e depois fiz prova para entrar para a polícia civil. Quando fui aprovada, vou confessar que tive dúvidas se deveria sair da Justiça e ir para a polícia. Fui falar com meu pai e ele disse: “Por que não? Fez um concurso tão difícil, foi aprovada, vai ganhar mais do que ganha na Justiça”. Isso em 1983, o país saindo da ditadura e ele me incentivando a ir trabalhar num universo totalmente masculino.

Mas ele era rigoroso? Era. A gente tinha horário para chegar em casa, por exemplo. Crescemos vendo eles dando duro na padaria, então começamos a trabalhar com 18 anos, mas o que a gente ganhava não entrava no orçamento da família, ficava com a gente. Foi assim que consegui comprar um apartamento.

Com quantos anos saiu de casa? Com 35. Guardava tudo o que ganhava. Fazia uma graça às vezes e dava um presente para eles, mas era isso. Só que aí chegou uma hora que falei: “Gente, tenho que ir embora”. Comprei um apartamento, comecei a reformar e a decorar. Comprei fogão, TV, geladeira, mandei tudo para lá, mas continuei morando com eles.

Como assim? Pois é. Mas aí um dia meu pai acordou, olhou para mim e disse: “Hoje é um bom dia para você se mudar”. Peguei uma mala, coloquei as roupas e fui. À noite, minha mãe foi com ele no apartamento, me olhou e disse: “Ai, minha filha, você vai ficar aqui sozinha?”. E meu pai, na mesma hora: “Vai, e vai ficar tudo bem”.

Você sempre foi feminista? Me descobri feminista, embora nunca tenha sido revolucionária. As namoradas de meus sobrinhos dizem: “Eles tratam a gente tão bem porque dizem que cresceram ouvindo seus discursos feministas”. Já minha sobrinha de 17 anos pergunta por que eu insisto nesse discurso. Para ela, já não faz mais sentido.

 

“Um dos sintomas do machismo é o cavalheirismo. Ao mesmo tempo que conseguem ser rudes, são cavalheiros”

 

O que tira você do sério? Mentira. Se me dizem: “Olha, errei, avaliei mal etc.”, tudo bem. Mas tentar me enrolar… tenho 29 anos de ponta, de vida recorrente em delegacia; eu sei quando estou sendo enganada. Sempre digo: “Não me casei e não foi à toa, porque não nasci para ser enganada” [risos].

Esse bom atendimento na ponta é muito importante para você, não? Muito. Outro dia estava reunida com todas as delegacias de Niterói, e um senhor bateu na porta. Fui abrir e ele disse: “Desculpe, mas precisava elogiar o policial que me atendeu agora”. Eu quis saber o que tinha acontecido. E ele: “Ontem fui a um show no Engenhão e quando cheguei em casa dei falta da minha carteira. Não sei se fui furtado, se perdi…”. Agora me diz concretamente, amiga, o que a polícia civil vai conseguir resolver disso? A gente ainda não trabalha com bola de cristal [risos], mas o atendimento que o policial deu àquele homem é a redução da sensação da violência. É isso.

Quando você diz “de ponta” está falando do policial que lida direto com o público? Isso. Sempre valorizei demais essa parte, o contato com o cidadão. Olha, a gente prendeu as lideranças do tráfico, prendeu o [traficante] FB em Campos do Jordão, o [traficante] Mica num dia de Carnaval, todas as grandes lideranças nós prendemos, e, ainda assim, às vezes tenho problemas de atendimento na delegacia, quando achei que todo mundo ia sacar que o atendimento é fundamental porque é o começo de tudo. Isso me chateia.

Mas você cuida da ponta até hoje? Às vezes acho que extrapolo. Se recebo uma ligação avisando que está acontecendo uma ocorrência, em vez de ligar para o diretor, ligo para o delegado de plantão. Domingo passado soube de uma ocorrência e liguei para a delegacia. O delegado não estava, falei com o policial, pedi para que o delegado me ligasse na volta. E o policial: “Dou o recado, sim, mas, doutora, me desculpe, são três da manhã, a senhora não estava dormindo, não?”. Continuo muito próxima deles.

Já foi assaltada? Nunca, mas já sofri 14 ameaças de morte. A primeira chegou durante uma apuração ligada à milícia, quando era delegada. E tiveram algumas ligações para o disque-denúncia… chega assim. A gente contraria muitos interesses.

 

“Nunca tive dúvida de que a polícia era o meu lugar. Sempre fui melhor policial do que namorada”

 

Tem medo? Nenhum. Tenho uma escolta expressiva [risos]. Mas, olha só, vou te falar, não tenho medo de morrer, mas queria morrer com a sensação de plenitude de meu pai. Tenho tanta certeza de estar fazendo as coisas certas e de estar protegida por Nossa Senhora que não sobra espaço para medo.

Mas estamos todos de certa forma presos e confinados por causa da violência. Você entende que a luta que encampou contra o tráfico pode nos libertar? O tráfico atinge a soberania do Estado e a liberdade de ir e vir de todo cidadão. Enfrentar o tráfico é devolver as ruas ao cidadão brasileiro. Entretanto, é também necessário entendê-lo pelo viés das relações comerciais. De um lado, temos alguém que tem um produto para vender, de outro, alguém que deseja comprar. Está na hora de enfrentar a questão sem hipocrisia. Há que se ter medidas eficientes que permitam o tratamento compulsório e adequado de dependentes, adultos ou crianças. Não há que se falar em liberdade de escolha quando aquele que tem o poder para decidir não está plenamente capaz para a vida civil.

Alguma vez foi embora para casa achando que tinha feito uma escolha de carreira equivocada? Nunca. Nunca tive dúvida de que a polícia era o meu lugar. Sempre fui melhor policial do que namorada, sempre amei mais a polícia do que qualquer homem que já tive a felicidade de encontrar. Brinco que sou solteira, mas que não sou abandonada [risos]. Olha só, se existe uma coisa com a qual tive uma história de amor, foi com a polícia civil. É um caso de amor antigo.

O que é tão sedutor? A possibilidade de poder fazer a diferença. Por isso me aborreço tanto quando o policial não percebe sua importância, quando trata a situação com distanciamento. Claro que certa distância é importante, mas é um exercício diário de sensibilidade. Uma vez estava numa festa e um convidado disse: “Levaram meu carro”. Eu continuei comendo. Aí, meu namorado falou: “Martha, você não acha que tem que fazer alguma coisa?”. Então me dei conta: aquilo para mim era uma frase tão natural que nem pensei em agir. Mas, depois que ele falou, pensei: “Claro”. Levantei e fui com a pessoa até a delegacia. O policial precisa entender que ele pode atender de uma forma acolhedora a mulher que chega com sua penca de filhos e em quem o marido bateu, pode fazer a diferença mesmo que alguns casos não sejam necessariamente de natureza policial.

Todos somos clientes da polícia. Nossa clientela vai do rico ao pobre, e vou ser cuidadosa para dizer isso porque posso ser mal interpretada, mas traduz a miséria humana: na hora da dor, sofremos igual. A mãe do filho de classe média que acabou de ser preso porque é traficante se torna tão frágil quanto a mãe que mora na comunidade e que o filho foi preso pela décima vez. Triste o policial que não consegue perceber isso e não fez a diferença na vida daquela pessoa.

 

“Nossa clientela vai do rico ao pobre, e não quero ser mal interpretada: na hora da dor, sofremos igual”

 

Tem diferença entre policial homem e policial mulher? Tem diferença entre policial comprometido e policial sem compromisso. Um dia uma servidora me disse: “Doutora, quero férias em julho porque tenho filhos”. Eu disse: “Você tem filhos, seu colega também tem, ele pediu primeiro e vai tirar primeiro”. “Ah, mas sou mulher.” “Não. Primeiro o interesse público, depois o do servidor.” Ou você vai sentenciar que os homens não podem ter problema com filhos e ter que sair do trabalho? Igualdade é igualdade para todos os lados.

O que significa “poder” para você? É a oportunidade de fazer aquilo que você julga importante para a sociedade, mas deve estar associado à sabedoria e despido de vaidade.

Já fez besteira no trabalho? Claro. Uma vez eu estava autuando uma pessoa em flagrante, a mãe começou a chorar e eu disse: “Minha senhora, não adianta chorar, seu filho é traficante”. E ela: “Tenho certeza que a senhora vai entender porque a senhora também é mãe”. Aí eu, arrogantemente, disse: “Não adianta a senhora ficar me falando isso porque nem filho tenho”. E ela: “Não? Então a senhora é uma figueira do diabo. Mulher sem filho é figueira do diabo”. O policial do meu lado disse: “Doutora, a senhora não vai fazer nada?”. E eu: “Vou sim, vou pedir para ela sair daqui”. “Mas, doutora, a senhora não vai autuar?”, ele me cobrou. E eu: “Autuar pra quê? Por quê?”. A verdade é que eu não precisava ter sido arrogante, sabe? Quando eu disse: “A senhora nem perca seu tempo porque nem filho tenho”, o que eu talvez estivesse dizendo é que filho como o dela era melhor não ter. O professor Ricardo Balestrelli, que foi secretário nacional de Segurança Pública, diz que o policial é o pedagogo da cidadania. Por isso a gente entende quando o erro do policial ofende tanto, porque ele é o exemplo.

Você tem uma rotina fora do trabalho? Sou uma pessoa de rituais. Gosto de ir ao mesmo mercado, à mesma manicure, à mesma cabeleireira, à mesma igreja… As pessoas já me conhecem porque frequento há anos. Outro dia estava entrando no mercado e o carinha no microfone da oferta-relâmpago começou: “A doutora quer azeite hoje?” [risos]. Tenho o florista que me atende há anos, o cara da padaria que me atende há anos… E, quando eu chego, chegam quatro homens comigo. Dois saem do carro antes, dois ficam. Olha, deve ter sido muito difícil para eles se adaptar à minha rotina, porque uma coisa é lidar com homens e ter que eventualmente ir ao Maracanã, outra é lidar com uma mulher que faz mercado, hortifrúti, cabeleireiro...

Tem outros rituais? Todos os dias, quando entro no carro, sento e rezo. Na porta do carro já tem meu livrinho de orações. Toda segunda-feira chego aqui e, antes de começar meu dia, vou para o último andar e rezo. De lá vejo o Cristo, vejo o mosteiro da Glória, a [avenida] Presidente Vargas, o tamanho do meu privilégio e o tamanho da minha responsabilidade. Tem dias que as coisas começam a dar errado e eles me ligam: “A chefe não rezou hoje?” [risos].

Você gosta do que é familiar? Moro ao lado do [restaurante] La Mole, na Tijuca, e desde que o mundo é mundo eu frequento lá. Sabe por quê? Porque chego e o Arimateia vai dar um jeito de me atender bem. Se eu tiver que esperar, vou tomar uma cerveja bem gelada, depois eles vão fazer a pizza exatamente como gosto. Poderia estar no restaurante do Claude Troisgros, é ótimo, eu sei, mas seria atendida como me atende o Arimateia? Mamãe gosta de comer fora e ir ao teatro, e vou bastante com ela também.

A que acha que se deve o sucesso com as UPPs? Acho que foi uma política pública que teve o mérito de recuperar o território e devolvê-lo ao cidadão. A sociedade tem que se apoderar dessa política pública, qualquer que seja o governo que venha.

Já ouvi gente das comunidades dizendo que as UPPs foram ótimas, mas que houve aumento da violência contra a mulher. Verdade, mas não é que aumentou a violência contra as mulheres, o que aumentou foi a visibilidade dessa violência à medida que as mulheres deixaram de ser impedidas de fazer um registro policial. Antes, fazer um registro era levar a polícia para dentro da comunidade, e isso o tráfico não permitia. Provavelmente aquela mulher nem gritava, porque, se gritasse, o traficante ia bater na porta dela.

Precisamos mesmo ter duas polícias, a civil e a militar? São instituições com funções diferentes. Sou a favor da integração, mas não da unificação, que precisaria de mudança constitucional. As duas devem se ajudar. Acho que não tem mais espaço na polícia, e aí vou me permitir, embora não autorizada, a dizer que não existe mais espaço na polícia para amador, rivalidade ou achismo. A gente trabalha com meta, redução de indicadores, investimento em tecnologia, monitoramento de resultados. Se a gente fizer sem rivalidade e sem vaidade, vai dar tudo certo.

Faltou perguntar alguma coisa? Se cozinho bem. Sim, muito bem [risos]. E recebo bem também, faço questão de usar o que tenho de melhor. Eu detesto copo de requeijão, por exemplo, com todo o respeito. Receber amigos e cozinhar para eles me dá muito prazer. Mesmo com toda a correria.

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