LOYAL: o movimento que desfila as periferias

por Mayara Rozário

Criado no Capão Redondo pela articuladora Jaqueline Leal, o brechó on-line se transformou em um espaço de expressão e resistência cultural das quebradas

Fábricas de cultura lotadas. Uma galera animada deixando sua mensagem em looks cheios de personalidade. Na música no fundo, Racionais MC’s ou algum artista da cena underground do extremo sul de São Paulo, como Mano Judão, Alt Niss e Mulambo. Os aplausos e gritos que tomam conta do lugar quando a primeira modelo aparece na passarela ecoam além da ponte. São assim os desfiles da LOYAL, o brechó idealizado pela publicitária e articuladora cultural Jaqueline Leal nas periferias de São Paulo. O próximo já tem data para acontecer. No dia 15 de fevereiro, uma praça do Capão Redondo recebe a décima edição do desfile – a primeira à céu aberto.

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Quando criou o LOYAL, em 2017, Jaqueline queria vender peças customizadas a preços acessíveis. Mas a marca batizada com seu apelido deixou de ser só sobre roupas e se tornou um movimento de resistência e autoestima periférica. Nos desfiles mensais que mobilizam os jovens das quebradas, todo mundo trabalha em conjunto para trazer aos eventos shows, conteúdos audiovisuais, dança e outras intervenções artísticas. “Eu nunca tinha visto um desfile no Capão Redondo e até hoje escuto feedbacks de pessoas que viveram isso pela primeira vez com o LOYAL. Nas periferias não se falava sobre a nossa autoestima, sendo que ela sempre nos foi tirada. O LOYAL se tornou um espaço de arte, criação e expressão que empodera a quebrada. E a quebrada precisa disso”, diz Jaqueline. 

Para a articuladora cultural, é extremamente importante mostrar a beleza das favelas e exaltar ao máximo o trabalho e a trajetória de pessoas que moram na região. “É mais fácil de se ver e se imaginar naquele lugar, sabe? A possibilidade de troca é bem maior quando minha referência mora no mesmo bairro que eu. É sobre isso”, afirma. A lógica de inverter o fluxo periferia-centro é um dos objetivos desse movimento, que ela chama de “desistylist”. Criar redes de apoio e desenvolver um ambiente de consumo e produção criativa também faz parte das ambições de Jaqueline. “É importante que as pessoas não tenham medo de atravessar a ponte. Meu trabalho só faz sentido se eu chegar primeiro nos meus vizinhos, nas pessoas que moram onde eu moro. Nesses três anos percebi o quanto conseguimos mobilizar e impactar quem está à nossa volta", diz.

É isso o que o movimento quer trazer para a próxima edição do LOYAL, que tem como tema “novo poder”, inspirado na música do rapper carioca BK’. "Queremos falar sobre a destruição de falsos heróis e a redescoberta de uma força que nos foi tirada. A quebrada é o novo poder, ela é o novo sistema. As coisas surgem aqui e rodam entre nós”, explica Jaqueline. O tema dos desfiles são pautados de acordo com as urgências do momento. As nove edições anteriores trataram sobre assuntos como feminismo, suicídio, estética negra, corpos não-padrão, o “Triângulo da Morte” – como foram batizados os bairros Capão Redondo, Jardim São Luís e Jardim Ângela nos anos 90 – e a maneira como a periferia é tratada pela mídia.

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“Moda é um ato político. A roupa é a ferramenta”

Na hora de criar as coleções, Jaqueline garimpa em brechós e separa tudo o que encontra por cores e texturas. Depois, é hora da customização. Escritos com canetas coloridas, brilhos e o que mais surgir de inspiração são incorporados às roupas. O Instagram e o Pinterest são fontes para suas ideias, mas ela está sempre de olho no que as pessoas estão vestindo pelas ruas. A diversidade presente nas suas coleções também está nas passarelas. Os corpos costumeiramente excluídos dos desfiles de moda são os corpos perfeitos para o LOYAL. Os modelos não são escolhidos por meio de casting e, até a última edição, eram pessoas que demonstravam interesse em desfilar e acabavam sendo convidados pela equipe. 

“As pessoas que estão à frente dessa grande estrutura que é a moda precisam se desvincular de muitos pensamentos, principalmente o de que moda é só roupa. Moda é um ato político, representa os corpos, as pessoas. A roupa é a ferramenta. Primeiro a gente pensa em quem vai usar e, depois, o que vai usar. Eu me visto pra quem? Quem eu quero vestir como estilista? Moda ainda é capital, mas, para mim, representa os corpos. Moda é o meu ato de existir”, diz Jaqueline.

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A ideia do LOYAL é quebrar a lógica do mercado. A marca criada pela articuladora cultural reforça a importância de ser quem você é, ocupar os espaços que quiser e deixar de lado todas as imposições sociais que tentam te ditar o que falar, o que fazer, o que vestir. “Nós trabalhamos com moda, e a moda diz que somos o que temos. Como a gente, que é de quebrada, não tem muito, logo se torna invisível. Queremos dizer que somos a partir do que somos", explica. "Acredito que ser e existir são atos políticos. Eu assumo que eu sou uma mulher negra da periferia, que mora no Capão Redondo. É esse o conceito que desfilamos”.

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Nesses três anos, foram muitas as conquistas do movimento. O vídeo de abertura do LOYAL 5, sobre o “Triângulo da Morte”, foi traduzido e exibido em uma exposição na Índia. Para aumentar o impacto do projeto, Jaqueline tem dado palestras e oficinas em fábricas de cultura e no Sesc, falando sobre gestão cultural e produção criativa. Mas, para ela, o retorno que recebe das pessoas são as melhores recompensas. “É surreal poder levar para outro país nossa arte, não só falando sobre moda, mas contando sobre nosso território. Mas uma pessoa passar a usar shorts e aceitar seu corpo por conta do incentivo desse movimento é mais valioso que qualquer outra coisa”, garante.  

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Imagem principal: Divulgação

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