Chega de silêncio

por Kika Salvi
Tpm #159

O abuso sexual infantil é uma pandemia mundial. Determinada a romper com o ciclo silencioso e devastador, a jornalista Kika Salvi conta como foi abusada pelo avô

Anotícia dizia que mais de 20% das mulheres e cerca de 7% dos homens ao redor do mundo foram sexualmente abusados na infância ou na adolescência, a maioria dentro de suas próprias casas. Dizia que o abusador geralmente é alguém da família ou muito próximo à criança. Estremeci. Era surpreendente que aquilo tivesse acontecido com tanta gente além de mim. A descrição feita pela Organização Mundial da Saúde** (OMS) das consequências emocionais do abuso sexual parecia o meu retrato falado e não me conformei por ter passado a vida inteira sem saber nada daquilo.

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Por ano, cerca de 150 milhões de meninas e 75 milhões de meninos são sexualmente abusados. O abusador envolve a criança num processo gradual de sexualização que se torna mais invasivo com o tempo e pode durar anos.


Desde pequena eu me sentia diferente. Eu brincava, como toda criança, mas a maior parte do tempo era sozinha. Tinha amigas, mas sempre me sentia tensa perto delas: eu as achava mais bonitas, mais espertas, mais legais e divertidas do que eu e, principalmente, mais felizes. Tinha problemas com todas as partes do meu corpo, me achava feia e sem graça e vivia a um passo de chorar, por isso tinha “esconderijos de emergência” pela casa. Não sabia o que eu tinha de errado, mas sentia que, mesmo quando estava alegre, por dentro estava triste, e esse sentimento me seguiu por muito tempo.


Preferia viver as histórias que eu criava em pensamento do que as de verdade e vivia desconectada. Essa desconexão acabou fazendo parte da minha personalidade, tornando intimidade emocional uma experiência quase insuportável para mim. Era difícil ficar junto e era difícil ficar só. Eu me sentia sem saída.

Por que, vô? Por que você fez isso?

“A pior característica do abuso sexual infantil é não saber que você está sendo abusada”


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Crianças sexualmente abusadas apresentam um quadro de dificuldade social, depressão, baixa autoestima, retraimento, ansiedade e problemas com o corpo.


Enquanto minhas amigas queriam que a Barbie e o Falcon se casassem numa linda cerimônia, eu queria que eles fossem para a cama. Elas brincavam de conto de fadas, eu de conto erótico – aos 8 anos de idade. Aos 11 fiz um desenho sobre os índios brasileiros com riqueza de detalhes. A professora olhou o trabalho, ficou séria e me deu uma borracha: “Apague esses pênis absurdos; eles devem ter metade do tamanho e ser voltados para baixo”. Quando as outras crianças perceberam que eu tinha desenhado índios com ereção, riram histericamente, deixando a professora ainda mais brava. “Está feliz, sua indecente?”, ela me disse com a voz rouca e raivosa.

No ano seguinte fiz um autorretrato em que eu chorava atrás das grades. O professor ficou intrigado e perguntou o que eu sentia quando o desenhei. Péssima, com muita raiva e com vontade de sumir. Mas disse: “Normal”. Se você fizer a pergunta certa eu respondo, pensei. Porque era impossível tocar naquele assunto, fosse com quem fosse. “Tem certeza?”, ele disse. “Tenho.” E ficou por isso mesmo.

Acho que a pior característica do abuso sexual infantil é não saber que você está sendo abusada. Ele é entregue em forma de carinho por alguém que você gosta e em quem confia, e para mim era apenas meu avô me pondo no colo e contando historinhas (sobre incesto, traição, mulheres que eram “tiradas do puteiro” pra casar, filhos bastardos e casais que se batiam por ciúmes). Era fascinante. Ele ilustrava os “causos” com ações e minha curiosidade só crescia conforme eu mergulhava no seu mundo.

Descobri que aquilo era errado pouco antes dos 10 anos. Víamos TV no quarto dele, eu no colo, quando meu pai chamou seu nome alguns segundos antes de abrir a porta. Em um átimo meu avô me jogou no chão, cruzou as pernas e virou o corpo para o lado. Naquele dia eu entendi seu sobressalto, entendi por que ele sussurrava e por que pedia segredo, ora com chantagem emocional, ora com ameaça. Ele dizia que caso eu contasse ninguém ia acreditar, e eu não sabia o que era pior: contar para os meus pais e ser a responsável por sua expulsão ou contar e duvidarem. Então eu não contei.

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O abuso incestuoso corresponde à maioria dos casos. O abusador manipula a confiança da criança através de sedução ou coerção para manter o abuso em segredo.

A partir dos 11 anos eu passei a odiá-lo e me afastei completamente. Ao me afastar, ele deu início a uma campanha difamatória na família: “Essa menina é uma víbora!”, “Mente que é uma desgraça!’” e minha predileta, “Se faz de santinha para os pais mas não é flor que se cheire”.

A adolescência foi difícil. Eu chorava todo dia, tinha crises de ansiedade e muita insônia, mas não conseguia pedir ajuda. Tinha medo de causar uma tragédia na família e me empenhava constantemente em disfarçar a raiva e a dor que eu sentia. Até que um dia eu simplesmente esqueci. A coisa toda se apagou e ficou só uma vaga impressão de que algo tinha acontecido, mas eu não sabia o que era. Eu já não pensava em meu avô, apenas me sentia miserável. Foi quando comecei a ter depressão.

A primeira foi aos 13. Eu sentia uma vontade infinita de chorar e me escondia numa capelinha de madeira onde rezava todo dia para não enlouquecer. Aos 16 tive a segunda, com fortes pensamentos suicidas. Mudei de escola, rompi com todos os amigos e passei mais de um ano sem conversar na escola nova. Aos 23 tive a terceira, logo após o nascimento da minha filha. Na época não associei uma coisa à outra, mas uma semana antes meu avô tinha me ligado para dizer que tinha feito algo muito errado. “Estou ligando para pedir o seu perdão”, dizia a voz dos meus tormentos. “Isso não vai ser possível”, respondi, e desliguei. Tive um acesso de choro e de fúria, pois o infeliz telefonema trouxe à tona tudo o que eu tinha esquecido – e não queria relembrar.


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Mais da metade das vítimas manifesta transtorno do stress pós-traumático por meio de desligamento e amnésia.

Aos 27 tive outra depressão, logo após me separar. Fiquei devastada por três meses e em seguida tive uma crise de euforia que durou quase dois anos. Parecia outra pessoa: tagarela, piadista, sedutora, histérica, leviana. Até que a euforia deu lugar a uma nova depressão e dessa vez eu larguei tudo: emprego, namorado, amigos e família. Só pensava em minhas filhas, por quem lutava a cada instante para me manter de pé.

Foi quando entendi que precisaria me tratar, com terapia e medicação. Me dei conta do quanto era destrutiva e me empenhava em detonar todos os vínculos que eu tinha. Obviamente eu não me dava conta disso, mas depois que você percebe o padrão é impossível não mudar.

E tinha o sonho recorrente que açoitava o sono: Era eu, com não mais de sete ou oito anos, sentada na cama diante do tronco de um homem. Não via seu rosto, apenas o dorso nu, os pelos do peito e, no lugar do pênis, uma cenoura, velha e rugosa, que se estendia em finos ramos marrons e na ponta havia uma gosma. O homem queria que eu a colocasse em minha boca. Virava o rosto, mas ele se impunha até eu engasgar. Acordava aos gritos, em lágrima e desnorteada. Em vez de ‘onde estou?’, a dúvida era ‘quando’: “ainda sou criança ou essa fase já passou?”.

“Hoje sinto um desejo gigantesco de fazer alguma coisa, de sair do lugar de vítima e me tornar agente da mudança”


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O abuso infantil afeta o sistema neurológico e imunológico da criança, a estruturação da personalidade e o padrão de relacionamentos futuros.

Quando comecei a falar abertamente sobre isso, várias pessoas me contaram suas histórias. Uma grande amiga foi abusada pelo primo mais velho, a outra pelo padrasto, a primeira desde os 6 e a segunda desde os 5. Dois amigos também sofreram abuso, um pela tia e o outro pelo tio. Experiências diferentes (sexo oral, estupro, masturbação etc.), consequências comuns: todos tiveram sérios problemas emocionais e fizeram ou fazem uso de medicação há muito tempo.

Aprender sobre as consequências do abuso sexual foi um grande alívio e fez eu me sentir bem menos só. Pude me entender e me aceitar, e até meu estado de espírito mudou – fiquei mais forte e serena. Enquanto eu sofria em silêncio e tentava apagar a minha história, vivia com uma dor que eu não sabia de onde vinha. Hoje sinto um desejo gigantesco de fazer alguma coisa, de sair do lugar de vítima e me tornar agente da mudança, não só da minha vida, mas também da sociedade. Então decidi compartilhar a minha história e fazer um documentário sobre o assunto. Em silêncio está em fase de captação de recursos, terá direção de Dainara Toffoli e produção da Cine Group, Globo News e Globo Filmes. Se a consciência individual pode ser tão transformadora, imagine o poder da consciência coletiva sobre o tema. Por isso, chega de silêncio. É hora de fazer muito barulho e mudar essa história.

Para saber mais: bit.ly/silenciokika

Kika Salvi, 42, é mãe, jornalista e escritora. Trabalhou por mais de 13 anos como editora e colunista de revistas e hoje se dedica a projetos de documentários sobre direitos humanos e saúde pública.

*Todos os dados foram extraídos de estudos publicados em 2015 pela Organização Mundial da Saúde (OMS): “Child maltreatment”, “World report on violence and health”, e “Guidelines for medical-legal care for victims of sexual violence”.

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