O corpo é meu, eu decido

por Jout Jout

Júlia Tolezano, a Jout-Jout, tem milhares de fãs. Mas não menos crises. Leia um trecho de seu livro ’Tá Todo Mundo Mal’, em que a youtuber disserta sobre como venceu a neura com a própria aparência

Alguém me disse algum dia que, quando você menstrua cedo, seu peito cresce mais. Mentira. Uma grande mentira. Essa pessoa mentiu para mim e eu, inocente, com apenas doze anos fiquei menstruada e pensei: terei os maiores peitos que esse mundo já viu. Mentira. Uma grande mentira. Minha amada menstruação veio antes da de todas as minhas amigas e meus peitos figuram entre os menores até hoje.

Depois de eu contar todo o meu trauma de adolescente com peitos pequenos a Caio, ele fez a gentileza de me confortar falando que eu tenho peitos médios. Um amor. O fato é que meus peitos médios me causavam enorme desconforto no passado. As blusas não cabiam, os vestidos ficavam frouxos no busto e apertados nas ancas, tudo errado. Errado de acordo com o que era desfilado nas matinês da cidade. Depois fui descobrir que não tem isso de errado, mas até chegar nesse desprendimento das modas das matinês, foi uma luta.

Para piorar, minha família, na melhor das intenções, me perguntava em todas as festividades de todos os anos de nossas vidas se eu não queria colocar um siliconezinho. Talvez eles também estivessem presos nas modas de suas matinês. Não, eu não quero botar um siliconezinho, obrigada. Depois de um tempo descobri que não tem problema colocar um siliconezinho. Porque na verdade cada um faz o que quiser da sua vida e quem sou eu para achar que alguém tem mais ou menos valor porque colocou ou não um siliconezinho. Mas o fato era que eu achava que qualquer alteração estética era uma grande vergonha. Desde colocar o cabelo para o lado — que era um suicídio social na minha escola —, até o tal do siliconezinho — menos problemático, talvez. Eu fiquei meio ranzinza com pessoas vaidosas depois que a puberdade chegou destruindo tudo. Era um pensamento que começava em “eu não sou bonita” e terminava em “ninguém mais pode ser”.

LEIA TAMBÉM: Entrevista com Julia Tolezano, a Jout Jout, nas Páginas Vermelhas da Tpm

Esse pensamento me custou muito quando descobri, anos depois de muitas crises com a minha puberdade, que o que faltava na minha cara era um queixo. Da mesma forma que algumas pessoas têm um nariz grande demais, uma orelha muito pequena, um braço maior que o outro, eu tinha um queixo que não se desenvolveu junto com o meu rosto. Ele parou nos meus dez anos e eu continuei crescendo. Fui ao doutor e ele disse que aquilo tinha um nome (que eu continuo sem lembrar) e que era importante que eu fizesse uma cirurgia para consertar. Caso eu não fizesse poderia ter umas complicações no futuro tipo apneia, roncar feito louca, uns apitos esquisitos no ouvido e outras coisas nessa linha. Mas na minha cabeça o que martelava era que, acima de toda e qualquer motivação para operar, eu ia ter um rosto harmônico de novo.

Eu decorava o discurso do médico e falava para as pessoas todas as possíveis complicações de saúde que eu teria caso não fizesse a cirurgia, e secretamente pensava mesmo era na parte estética. E isso me doía. Eu tinha uma vergonha terrível de sentir isso, ficava mal por fazer uma cirurgia superinvasiva só para ficar bonita de novo. E a verdade era que não era só isso. Eu realmente teria problemas mais para a frente, afinal até o plano de saúde reconhecia que a cirurgia não era estética. Mas na minha cabeça eu era uma ridícula que só ligava para as aparências. A lógica era simples: se eu não fizer essa cirurgia eu vou morrer? Não. Então é estética. Lógica estúpida.

Eu achava que me esforçar de alguma forma para ficar mais bonita era ruim. Era uma fraqueza. Algo risível. Por ter ficado muito tempo sendo a feinha do grupo, era como se fosse fútil da minha parte — e inútil — querer sair desse lugar; eu me apeguei a ele, assumi que era melhor ser esquisita do que lutar muito para ser bonita e acabar parecendo uma coitada. Por isso eu repreendia qualquer pessoa que ligasse demais para isso, qualquer pessoa que cogitasse colocar o siliconezinho. Alguns dos meus melhores amigos não apoiavam a cirurgia, e isso ainda me deixava ainda mais envergonhada da minha decisão; era como se estivesse escrito “estética! estética!” na minha testa.

Apesar de todas essas questões que existiam apenas na minha cabeça, fiz a bendita da cirurgia. O pós-operatório foi uma das piores experiências da minha vida, mas sobrevivi à base de muitos filmes. Aprendi a dar um valor sobre-humano à escovação da língua e jurei que jamais comeria sopa novamente. Passei dois meses podendo comer apenas líquidos frios e isso me fez chorar quando vi um peixinho frito. Mas tirando os incômodos naturais de um pós-operatório que te impede de abrir a boca, ficou tudo bem. Hoje eu faria tudo de novo sem problemas, e mais: sem culpa! Meu ouvido não apita mais, não tenho mais apneia e só ronco em ocasiões especiais. De brinde, fiz as pazes com a vaidade.

Hoje coloco meu cabelo de lado sem medo de as pessoas pensarem que estou me achando. Faço a unha, hidrato o cabelo quando dá vontade, não acho que malhar é sinônimo de futilidade, me maquio — mal, mas ainda assim conta —, prefiro usar roupas que favorecem o meu corpo e não tenho problemas em fazer clareamento nos dentes, coisas que soavam absurdas para mim em tempos de renúncia à vaidade. Tudo isso porque demorei para descobrir que as coisas que faço com meu corpo são para meu desfrute exclusivo e nada têm a ver com meus amigos, família e muito menos com os colegas de classe.

É o mesmo que falar “essa menina não tem noção de ridículo”. O que é noção de ridículo? Eu nunca soube. Quem define esse ridículo? Como os seres humanos todos podem ter a mesma noção do que é ridículo e do que não é? Ninguém pode definir o que é fútil para mim, ninguém decide o que posso ou não fazer. Afinal, é o meu corpo.

Assim como eu decido se vou cortar ou não o cabelo da minha Barbie.

Não importa, de verdade, se a minha prima acha que é uma má ideia.

A boneca é minha, o corpo é meu, eu decido. 

*Trecho do livro 'Tá Todo Mundo Mal' (Companhia das Letras), da jornalista e youtuber Júlia Tolezano, a Jout-Jout

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

fechar