Uma freira feminista

por Madson de Moraes

Ela defende o casamento gay, o aborto e um papel de liderança pra mulher na Igreja Católica. Por essas e outras, foi punida pelo Vaticano. Ela é Ivone Gebara, freira e feminista

Esqueça o hábito, as novenas e os cânticos, a vida enclausurada e o silêncio em comunhão com o divino. Isso não é parte do cotidiano da freira Ivone Gebara, filósofa e uma das expoentes da teologia feminista na América Latina. O que interessa a esta rebelde com causa, de 73 anos, é usar sua voz para provocar e questionar conceitos estipulados há séculos pela Igreja Católica, os quais têm marginalizado e oprimido mentes e corpos das mulheres: “Dentro do cristianismo, nós, mulheres, ainda somos colonizadas pela figura divina masculina”.

As posições defendidas pela religiosa feminista incomodaram o Vaticano. Em seus textos, Ivone faz questionamentos teológicos a respeito da imagem de Deus, da função das mulheres na Igreja, dos conteúdos dogmáticos ou de temas como o casamento gay e a descriminalização e legalização do aborto, além de críticas à estrutura patriarcal da Igreja. “É muito difícil de você mudar em 30, 40 anos de militância na teologia feminista", reflete.

Suas convicções ideológicas aparentemente inconciliáveis - catolicismo e feminismo - ganharam as manchetes na década de 90, quando afirmou em entrevista à Veja que era a favor da descriminalização do aborto. As críticas vieram de todos os lados e Ivone acabou punida pelo Vaticano, sendo proibida proibida de dar aulas e entrevistas. "Na Igreja, se aprende que os textos são a palavra de Deus. Nós, teólogas feministas, defendemos que sejam vistos como a produção literária de uma época com abertura à transcendência”, sustenta Ivone.

Porém, a punição do Vaticano, que tinha como objetivo silenciá-la, teve o efeito oposto. Ivone nunca mais se calou. Para ela, a liberdade de dizer o que pensa é como um dogma intocável: “Digo sempre que o Vaticano, ao me punir, me celebrizou”. Já faz 40 anos que a freira da Congregação Irmãs de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho milita na teologia feminista, período em que as críticas e punições conviveram com o impacto positivo de suas palavras. “Lembro-me de uma senhora que tinha feito um aborto em Pernambuco e, após ter lido a Veja na cabeleireira, veio me agradecer aos choros dizendo que Deus a perdoava por ter feito aquilo”, lembra.

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A postura de Ivone com relação ao aborto se deve bastante aos quase 35 anos em que morou em Recife, quando atuou em Camaragibe com mulheres pobres - não foram poucas as que enfrentaram situações delicadas em abortos clandestinos. “Entendo que a mãe tem direito sobre o seu próprio corpo. Nem em caso de fetos anencéfalos a Igreja Católica tem permitido o aborto. Essas questões são do âmbito da saúde pública e não de um dogma religioso", explica, com a ressalva de que sua intenção não é defender a interrupção gestacional de maneira indiscriminada. "Não defendo o aborto como método anticoncepcional, apenas reconheço que existe e é um problema de saúde pública. O Estado precisa dar assistência digna a essas mulheres e não as criminalizar”, explica.

As muitas fronteiras do feminismo teológico 

A identidade feminista ainda é um movimento recente dentro da Igreja - no Brasil e na América Latina, surge a partir dos anos 70. Ler a Bíblia para desconstruir a imagem negativa da mulher pecadora, redescobrir o papel das mulheres heroínas nos livros bíblicos e reivindicar a feminização de conceitos teológicos com a ideia de incluir um princípio feminino também na noção de Deus e da Santíssima Trindade. Valorizar o papel de Maria não como a virgem submissa e santa, mas como protagonista na história do cristianismo. Questionar a misoginia dentro da tradição cristã e dar visibilidade às questões contemporâneas e legítimas das mulheres na Igreja. Não é fronteira fácil de passar. 

Uma teóloga feminista ter acesso ao púlpito da Igreja é algo ainda muito raro no catolicismo, embora presente em outras religiões cristãs. Nas faculdades católicas, um curso sobre o tema não tem espaço onde elas poderiam questionar, por exemplo, afirmações de alguns nomes de peso, como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, que enxergavam em seus textos a mulher como inferior ao homem.

Às mulheres, reforça Ivone, cabe só a retaguarda: ou elas assessoram padres e bispos ou exercem atividades educacionais como uma catequese infantil. O que representa uma contradição, explica Ivone, uma vez que em boa parte das paróquias católicas são as mulheres, em sua maioria, que levam adiante os muitos projetos missionários. “A teologia feminista quer mostrar que a raiz da experiência cristã é igualitária e que as estruturas de poder da Igreja, há séculos concentradas nas mãos de homens, podem ser mudadas", acredita Ivone.

A teologia feminista resgata a igualdade de gênero que havia nas primeiras comunidades cristãs, deixada de lado no processo de institucionalização da Igreja ainda nos primeiros séculos, o que resultou numa “patriarcalização” de conceitos e ideias e afastou as mulheres das posições institucionais de poder. "Por isso, é importante debater o feminismo dentro da Igreja Católica. A teologia feminista quer desconstruir o direito natural, patriarcal e machista que a hierarquia católica impõe”, provoca.

Ivone já publicou mais de 30 livros sobre suas diversas posições feministas diante do catolicismo, em obras como O que é Teologia Feminista, As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina e Introdução à Filosofia Feminista.

Se você se perguntou se figura da Nossa Senhora de Aparecida não representaria a voz das mulheres no catolicismo, Ivone entende que não. “Nossa Senhora acaba sendo uma figura submissa e os discursos sobre ela, na grande maioria, são elaborados pelo homem”, sustenta.

Mesmo com um enorme desafio sempre à frente, Ivone ressalta conquistas do trabalho das teólogas feministas: “A Igreja já nos reconhece como um grupo que incomoda, o que é positivo. Hoje eu não temo mais dizer: sou feminista com todos os limites, contradições e paradoxos que o feminismo tem”.

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Imagem principal: Divulgação

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