O afeto é revolucionário

por Camila Eiroa

Gloria Pires vive psiquiatra Nise da Silveira no cinema e filme reacende discussão sobre luta antimanicomial e nomeação de Valencius como Coordenador de Saúde Mental

Mergulhar na loucura daqueles que são considerados indivíduos não sociais em um mundo capitalista não é tarefa para qualquer um. Nise da Silveira dedicou sua própria vida para transformar o universo de quem sofre com disparidades mentais. Em filme recém-lançado sobre sua biografia, Gloria Pires interpreta a psiquiatra brasileira e aluna de Carl Jung, que desafiou uma corja de homens que a diminuíam por ser mulher. 

Para a atriz, a grande lição na trajetória de Nise foi reconhecer o sistema manicomial como uma grande prisão. “Ela observou que quem não tivesse uma ocupação, sucumbia. E mais, questionou por que um doente mental era mandado para a enfermaria. Enfermaria é para alguém que está com alguma doença, algum machucado ou que precisa tomar um soro. É um outro tipo de conduta”, diz.

“Nise foi uma mulher muito política. Comunista, feminista, que foi contra todo o Estado. Ela era revolucionária”
Roberto Berliner, cineasta

Roberto Berliner, diretor de Nise - O coração da Loucura, que retrata a época em que a doutora trabalhou na ala de terapia ocupacional do do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro (RJ), acredita que Nise é uma grande humanista do Brasil. "Ela foi uma mulher muito política. Comunista, feminista, contra todo o Estado. Era revolucionária. Percebeu que, sem afeto, ninguém se mexe. Também era muito ligada à arte”, destaca. E foi pela arte que a psiquiatra mudou a vida dos internos.

Depois de ficar presa 18 meses por uma denúncia de possuir livros marxistas durante o Levante Comunista de 1935 e afastada do serviço público, foi no hospital retratado no filme que Nise retomou a sua luta, em 1946. Por ir contra os tratamentos de eletrochoques, lobotomia e isolamento social, foi transferida para a menosprezada área da terapia. Lá, criou um espaço de convivência que destoava do restante do hospital: um ateliê.

“Não é só medicar as pessoas, é dar uma oportunidade de elas acharem seus caminhos apesar da doença. Como um diabético, por exemplo. Ele tem um problema que precisa cuidar, o que não faz dele uma pessoa que deve ser presa e separada da família, sendo maltratada e usurpada de seus direitos mínimos”, diz Gloria sobre os trabalhos artísticos desenvolvidos na ala.

Para Roberto, sua aproximação e encanto pela história de Nise não tenha sido ao acaso. “Eu tinha um irmão com síndrome de down que foi internado, convivi com hospitais psiquiátricos”, conta. A internação, recomendada por médicos psiquiatras e hoje impensável, aconteceu quando Roberto tinha doze anos e seu irmão oito — a internação durou até o seu falecimento, aos 45. "Eu era uma criança, nem sei se consegui compreender aquilo, mas foi muito marcante pra mim", lembra.

“Você não está medicando as pessoas, está dando uma oportunidade de elas acharem seus caminhos apesar da doença”
Gloria Pires

O cineasta se recorda de que os médicos achavam que seria importante o irmão ser criado sem o contato da família e acredita que a internação não foi positiva em nenhum ponto. “Era só a filosofia de um médico, sabe? Quem tem síndrome de down tem um carinho gigante, são pessoas extremamente afetuosas. Música, arte e afeto eram três coisas muito importantes pra ele e que foram tiradas no hospital.”

A trajetória de Nise, que faleceu em 1999, inspira diversos psiquiatras até a atualidade. É o caso do médico Lula Wanderley, de 66 anos. “Depois de formado, conheci Nise no Rio, na década de 80. Ela me levou para trabalhar em sua Casa das Palmeiras (clínica para antigos internos de instituições psiquiátricas), onde me aproximei da área da psiquiatria através de um ângulo muito mais saudável”, conta.

Lula tornou-se funcionário do Museu de Imagens do Inconsciente, onde encontram-se as obras criadas pelos internos do Pedro II. Ele se engajou nas lutas pelas transformações da psiquiatria durante o final da ditadura militar, que deram início ao movimento da Reforma Psiquiátrica. “É um movimento social que pretende retirar o hospital como centro de tratamento daqueles em sofrimento psíquico”, diz.

Desde 1986, os CAPs [Centro de Atenção Psicossocial] foram adaptados nacionalmente para substituir os manicômios e, em 2001 foi aprovada a Lei Federal 10.216, que prevê a proteção dos direitos das pessoas com qualquer tipo de doença mental. Com isso, diversas alas psiquiátricas em hospitais foram fechadas e a reabilitação através do trabalho, da cultura e do lazer.

Diversos grupos de luta antimanicomial temem a recente nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho por parte do Ministro de Estado da Saúde, Marcelo Castro, como Coordenador de Saúde Mental. Valencius é considerado um símbolo contra a reforma psiquiátrica. Ele assumiu a direção Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi no Rio, o maior hospital psiquiátrico privado da América Latina, que foi fechada em 2012 depois de um longo processo que investigava denúncias de maus-tratos. 

O filme sobre a trajetória de Nise, que está em cartaz, foi filmado em 2012. A data de seu lançamento, embora coincida com o levante de movimentos populares contra a nomeação de Valencius, não foi proposital. “As pessoas têm, sim, que temer qualquer retrocesso. Hoje o Brasil tem um tratamento muito avançado em relação a vários países, graças a Nise e as pessoas que tiraram o doutor Valencius da Casa de Saúde Dr. Eiras”, defende Roberto.

Créditos

Imagem principal: Vantoen P JR

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