Gilmore Girls, um ano para recordar: expectativas vs realidade

por Renata Corrêa

Doa a quem doer: Amy Shermann-Paladino é uma mulher no controle criativo dessa dramaturgia e assim como Rory, Lorelai e Emily, não precisa cumprir expectativas de ninguém

A certa altura, no episódio Inverno da temporada de Gilmore Girls – Um ano para recordar, Lorelai Gilmore, a mãe-amiga, diz para Rory, sua filha-grude que Star Hollows é um globo de neve. Em mais uma dessas sacadinhas do roteiro que amamos perceber, a metalinguagem e autoironia funcionam para mostrar exatamente isso, que o universo de Gilmore Girls é protegido por uma fina camada de vidro, e que dentro desse lugar nada de mal pode acontecer.

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“O universo de Gilmore Girls é protegido por uma fina camada de vidro, e que dentro desse lugar nada de mal pode acontecer”
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Essa estrutura fabular lida com a tragédia e com a morte de forma tangencial. Na primeira fase da série, a morte apareceu três vezes. Quando Lorelai e Sookie esperam a morte da proprietária do imóvel onde elas instalariam sua pousada, a Dragonfly inn, quando Jess faz uma pegadinha com Taylor desenhando uma marca de corpo com giz na frente do mercadinho e quando o velho Paul, um respeitado cidadão de Stars Hollow que promove uma peregrinação de despedida todos os anos finalmente morre. Mas dez anos depois o amadurecimento e o salto para dor acontecem: Richard Gilmore, patriarca da família morre e finalmente vemos as personagens se dilacerar.

E o dilaceramento é grande: Amy Shermann Paladino, a criadora das garotas espertas que falam rápido opera em duas esferas distintas - nos dando exatamente aquilo que gostaríamos de ver e destruindo nossas expectativas logo depois.

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Como tínhamos grandes expectativas! Dez anos atrás quando a série se encerrou, Lorelai finalmente parecia aceitar o amor fiel de Luke e Rory deixava o namoro com Logan para trás e embarcava na sua primeira aventura como jornalista para cobrir a campanha de um promissor candidato democrata à presidência: Barack Obama.

“É de apego emocional que as séries são feitas. Amamos aquelas pessoas. Mesmo que elas façam cagada”
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Ver Rory perdida, como um Arturo Bandini apegada a um exemplar da revista New Yorker e Lorelai neurótica sem querer mudar um milímetro da pousada não me pareceu, a princípio, um retorno digno das garotas Gilmore. Meu feminismo gritou em protesto. Com a maneira mimada com que a Rory trata o “poor Paul” e seu caso secreto com Logan, com a obsessão de Lorelai por um casamento tradicional. E se não fosse o apego emocional…

Bom, é de apego emocional que as séries são feitas. Amamos aquelas pessoas e desejamos muito ver o que vai acontecer com elas. Mesmo que elas façam cagada. Então relaxei e esperei para finalmente assistir e me deixar surpreender. E não importa tanto o resultado final (e as tais quatro últimas palavras) quando a trajetória que nos fez chegar até elas.

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E enquanto eu me irritava, frustradíssima pelas expectativas não cumpridas, Lorelai finalmente se mostrava frágil fazendo terapia com a mãe, decide fazer uma peregrinação inspirada em Wild (film or book?),  Rory descia de seu pedestal e ia trabalhar num jornaleco de Stars Hollow e entendia que a relação com Logan era uma farsa, Emily usava sua primeira calça jeans, arranjava um namorado e então, finalmente eu entendi que a beleza da coisa é que Amy Shermann-Paladino é uma mulher no controle criativo dessa dramaturgia e assim como Rory, Lorelai e Emily, ela não precisa cumprir as expectativas de ninguém.

E as mulheres Gilmore finalmente completam um ciclo. Lorelai se casa. Rory passa a limpo a relação idealizada com seu pai ausente, escreve um livro e engravida. Ambas fincando raízes cada vez mais fundas em Stars Hollow, o que para alguns significa origem, para outros maldição. E aqui preciso confessar: Emily sempre foi minha Gilmore favorita. A única a finalmente ter coragem de quebrar o frágil vidro do Globo de Neve que recobre a cidadezinha encantada, que decide vender a mansão, mudar-se para Nantucket (não à toa, cidade de onde parte o Pequod, navio que empreendeu a maior aventura marítima de todos os tempos - Moby Dick) e  trabalhar pela primeira vez na vida. É com ela que temos a certeza que nunca é tarde - nem para recomeçar, nem para revivals de séries que nos fazem chorar na frente tv comendo desesperadamente um balde burritos e pop tarts. Sem engordar, claro, como é próprio do DNA privilegiado de nossas heroínas.

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