por Estela Renner

Exclusivo para a Tpm, um texto da diretora e roteirista: ”Do que as mulheres brasileiras se alimentam versus do que elas sentem fome”

Estela Renner é diretora e roteirista de ficção e documentarista. Lançou em 2012 pela Maria Farinha Filmes o documentário Muito Além do Peso, que retrata a epidemia de obesidade entre crianças no Brasil. Para a Tpm ela escreve uma ficção, "Do que as mulheres brasileiras se alimentam versus do que elas sentem fome"
 

"Ela chegou a São Paulo com fome de algo. Nunca tinha ido a um shopping, nunca tinha andado de táxi. Queria andar debaixo da terra, devorar trilhos subterrâneos. Tinha sede de gente, de vida, de loucura. Veio sem mala, sem guarda-chuvas, sem nome. E daria seu nome por um pulso. Achou que tinha fome de fumaça, de cachaça, de asfalto. Experimentou festas, raves, raios de lua. Bebeu o que lhe foi oferecido, comeu coxinha, empadinha e até uma menina. E ainda assim sentia fome.

Fez o tour Ipiranga, Luz, Sé. Fome, fome, fome. Tinha certeza que a vida em São Paulo lhe seria farta, larga, entupida. Mas Marta sentia frio. Mas Marta sentia dor. Marta caminhava pela Marginal. Achava que se aproximando do caos, comungaria com as luzes vermelhas e se livraria dele. Do caos da fome, da fome de não saber o que te move. Marta leu jornais, revistas, mídia Ninja. Só sabia que o compartilhamento coletivo do seu sentimento solitário não se curava nas estradas. E por mais que ela caminhasse, menos ela sabia, mais ela se afastava. E ela tinha fome de saber do que tinha fome. E este sentimento de entrar em uma livraria enorme e não se interessar por título algum, não era o que Marta esperava.

Marta estava desesperada. Marta no Terraço Itália. Engolia andares, janelas, cimentos. Fome. Marta pede ajuda. O que é bom neste cardápio? O garçom solícito traz a bandeja de frios e a faca do pão. Marta chora. Desce depressa as escadarias e sente que seus cabelos a perseguem. Corre pelas curvas, pelas chuvas. E enquanto Marta some no meio da escuridão, suas lágrimas soltas no ar demoram um tempo inusitado para se esfacelarem ao chão. Marta acorda na grama do parque Ibirapuera. Vê que os patos mergulham suas cabeças e giram trezentos e sessenta. Marta acha graça. Poderia passar horas parada olhando o girar dos patos. Mas antes disto, Marta constata. Algo sobre a fome que tinha brigado com ela e a violentado como num tormento impossível, impassível e indelicado. A fome que Marta tinha, não era fome de mar, de peixe ou de qualquer outra comida. A fome que Marta tinha, era fome do nada."

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