A Bela Gil que os memes não mostram

por Natacha Cortêz
Tpm #169

Guru de uns e pedra no sapato de outros, a apresentadora vive entre a devoção e a zoação

Tem pouco mais de dois anos e 89 episódios que Bela Gil está na TV. Algo que até hoje parece mentira pra ela que nunca quis, nem sequer imaginou, ser uma figura pública como o resto da família. Sétima filha de Gilberto Gil (com a quarta mulher, Flora), Bela cresceu entre artistas e desinibidos, mas não se sentia exatamente como eles. Tímida, foi a criança menos aparecida da prole – que, imagine só, incluía Preta Gil. Mesmo bebê, Bela era “silenciosa e serena”, lembra Odete, a pernambucana que cuidou de quase todos os rebentos de Gil e hoje ajuda Bela com Nino, seu segundo filho.

Do programa de receitas naturais no GNT para o tribunal impiedoso da internet, bastaram meia dúzia de exibições e alguns ingredientes pouco usados nas cozinhas brasileiras. A linhaça, a cúrcuma, a cevadinha, a melancia grelhada e o leite de castanha fizeram sua fama. Propor trocas na alimentação das pessoas mexeu com uma audiência afeita à praticidade em um mundo que ensina a correr. Bela foi, e ainda é, ridicularizada toda vez que fala em mudanças. “As pessoas se incomodam com tudo que as tira do automático. É como se eu estivesse opinando onde não fui chamada”, conta. O vespeiro inflama ainda mais quando a apresentadora bate a própria placenta em uma vitamina de banana, leite de amêndoas e morango – 
“era o que tinha na geladeira” – e conta à imprensa que não só a tomou como ofereceu à primogênita, Flor. Até o fechamento desta entrevista, eram 140 mil resultados para “Bela Gil placenta” no Google. A maioria deles, críticas que estranham, repelem e julgam o comportamento de Bela, que segue firme em suas convicções. “Nada me abala”, ela responde com um sorriso de orelha a orelha.

Passinhos pra trás

Para as fotos e entrevista a seguir, encontramos Bela às 10 da manhã de uma quinta-feira de setembro e nos despedimos por volta das 17 horas. Com ela, foi Nino, seu bebê de 5 meses, Odete e um assessor. Bela não é de falar pelos cotovelos; mas de ouvir atentamente e responder com cuidado. É de fazer pouco barulho – a ponto de a gente se perguntar se ela está mesmo no ambiente – e aceitar com mansidão as sugestões de quem a maquia, de quem a veste e de quem a dirige pras fotos. Porém, foi dela a sugestão para que a entrevista acontecesse de cara para o sol, literalmente. Ela então estica os braços na cadeira pra que recebam a luz quente e pede um demaquilante pra retirar quaisquer resquícios dos produtos que usava no rosto durante as fotos.

Nascida na Bahia e criada no Rio de Janeiro, Bela riu da fama a vida toda. Hoje, aos 28 anos, está não só confortável mas muito a fim do lugar que ocupa, o de comunicar hábitos mais naturais e saudáveis para além do seu quintal. O que começou como gosto por comida e nutrição, hoje é bandeira de uma jornada comprometida que “só está começando”, ela garante. No ar com a sexta temporada do programa Bela cozinha, Bela tem ainda dois livros publicados com mais de 300 mil cópias vendidas (o que a torna uma best-seller), já preparando o terceiro; assina o cardápio de dois hotéis no Rio de Janeiro; lançou recentemente uma linha de produtos naturais com a marca Mãe Terra; e ainda mantém, desde janeiro, o Canal da Bela no YouTube. Foi ali que publicou o vídeo do parto de Nino, que aconteceu na banheira de sua casa em Nova York, ao lado do marido, da filha, de uma doula e de uma parteira. “Publiquei pra instigar a discussão, trazer ela à tona em um país recordista em cesárea”, justifica. “Minha causa é melhorar a vida das pessoas. Dar passinhos pra trás e olhar pras tradições é o meio que uso pra fazer isso”, completa. Se depender de Bela, o futuro vai ter traços do passado, muita fruta grelhada e mais liberdade, “que é o que a gente tem quando se informa sobre o que consome”.

Tpm. Qual é o melhor meme que fizeram sobre você? E o pior?
Bela Gil. Olha, antes de qualquer coisa, sou a favor dos memes. O humor que eles trazem populariza os temas dos quais trato. Vi numa foto de uma passeata: “Bela Gil, por favor, substitua o Cunha por linhaça”. Achei interessantíssimo, além do fato de a linhaça virar assunto. Acho os pontuais os melhores. Quando o WhatsApp saiu do ar, tinha este: “Você pode substituir o WhatsApp por pombo-correio”. Eu rio junto. Nunca nenhum meme me deixou triste.

Nem puta? Nem puta. As pessoas não acreditam, mas essas coisas não me abalam. O que me afetaria é se alguém julgasse com propriedade, mas até agora não aconteceu. Essas críticas que acontecem só com o intuito de me deixar mal, desculpa, mas não vai rolar.

E à sua família, afeta? Meu marido [João Paulo Demasi] se incomoda. Ele fica reclamando, resmungando, olhando o celular. E aí eu fico triste por ele. Fico quase que perdendo as esperanças de continuar tentando passar o que sei, com um sentimento de impotência. Existe uma preguiça muito grande nas redes sociais. O que me deixa triste é essa preguiça.

“Essas críticas que acontecem só com o intuito de me deixar mal, desculpa, mas não vai rolar”
Bela Gil

Mas você tem visto, por outro lado, reações positivas? Muito! E aí é sensacional. E eu recebo muito disso. As pessoas realmente testam as receitas e percebem as mudanças.

Alguma vez pensou “não quero mais me expor”? Nunca.

Li relatos seus dizendo que na infância você era supertímida e introspectiva. Como é estar na TV? Eu de fato era tímida. Olha, nunca me imaginei na TV. Mas falar de algo que você sabe, com propriedade, é mais fácil. Assim me sinto bem na frente das câmeras. Agora, atuar, cantar... sem chance. Não nasci pra isso.

Como você foi parar na televisão? Eu dava aula de culinária natural em casa em Nova York. Uma amiga minha, a Dandara [Dandara Ferreira é amiga de infância de Bela e filha de Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura], foi ver e mandou: “Caraca, Bela, acho que isso daria um bom programa de TV”. No começo achei que ela tava maluca. Mas ela me gravou cozinhando, fez um piloto e mostramos no GNT.

Daí a contar nas redes que você bateu a placenta do Nino com banana e tomou tem um salto. Coloquei minha cara à tapa. E não só com a placenta, mas com tudo que falo e faço. É a minha proposta: fazer as pessoas saírem um pouco da caixinha, incomodar. E dizem: “Ah, mas ela faz isso pra aparecer. Ela não sabe mais o que inventar...”. Eu nunca pensei “o que posso fazer agora pra chocar?”. É tudo tão naturalmente meu! E acho que é isso que incomoda. Sou assim! Escovo meus dentes com cúrcuma, faço meu próprio desodorante, gosto de churrasco de melancia e comi a placenta do meu filho. Na verdade, não abri isso de fato. A Flor acabou falando num live que fiz no meu canal no YouTube. Ela entregou: “Ah, minha mãe tomou vitamina de placenta”. Mas não me importo, uma hora ou outra eu ia falar mesmo.

Por que é bom comer placenta? A maior 
parte dos mamíferos come depois do parto, é uma forma de repor energia. Os seres humanos não necessariamente precisam comer. Mas eu acho interessante porque é uma fonte de nutrientes, tem bastante hormônio, tem muito ferro e minerais. Mas existe uma questão simbólica também. Você tá ingerindo a fonte da vida. Comi a placenta fresca em uma vitamina e minha doula ainda dissecou o restante e fez cápsulas pra eu ir tomando durante os próximos meses.

Você acredita que as pessoas que te criticam querem também te desmoralizar, desvalorizar este teu poder de engajar? Não. Sinto que incomodo muito por instigá-las a sair do automático, da zona de conforto. As pessoas são resistentes à mudança.

A Flor também nasceu de parto natural? Sim, mas não foi tão natural quanto o do Nino. O dele foi em casa, o dela, no hospital. E sofri algumas intervenções, como a episiotomia, que é o corte do períneo.

E perguntaram se você queria o corte? Não. Pedi a anestesia e a médica fez o corte sem saber o que eu achava daquilo. Eu não tinha muito conhecimento naquela época. Era muito nova, tinha 20 anos.

Isso nos Estados Unidos? Sim, em Nova York. Os Estados Unidos fazem muitos partos vaginais, é verdade, mas isso não quer dizer que são humanizados. Há muita interferência e violência no parto não cirúrgico que acontece nos hospitais.

E o do Nino também foi em Nova York. Foi. Mas foi um parto completamente diferente. Já sabia de todas essas intervenções que poderiam acontecer, então me preveni e pensei: “Pra eu não correr o risco de tomar ocitocina [um hormônio natural responsável pelas contrações, que pode ser obtido sinteticamente e administrado para induzir o parto], de ter uma episiotomia desnecessária e pra eu ter o parto que quero, preciso me informar”. Descobri que parir é se entregar. E o cenário completamente controlado dos hospitais não colabora pra essa entrega. Então, ter o Nino em casa foi maravilhoso. Foi um parto rápido, comecei a sentir as contrações às 
5 horas, 10h15 ele nasceu. Não havia um médico, só a doula e a parteira.

No vídeo parece que você teve prazer no parto. Foi prazer mesmo? Parir também é um ato sexual. Algumas mulheres chegam a ter orgasmo, o chamado parto orgástico. Eu não tive essa sorte. Doeu, claro. Mas, quando o bebê nasce, a sensação é inexplicável. Nunca imaginei gritar como gritei. Fiquei irreconhecível. Mas isso é bom, se transformar faz parte da liberdade do parto.

Temos índices impressionantes de cesárea no Brasil, quase 90% na rede privada, 45% no SUS. Isso incentivou você a publicar o vídeo? Infelizmente o parto domiciliar ainda não é pra todo mundo. O medo de parir naturalmente é muito enraizado na nossa sociedade. Não é toda mulher que se sente preparada e não é por culpa delas. É uma coisa social e cultural imposta pra fazer rodar uma indústria. Passamos a precisar da figura do médico, o salvador - colocamos o médico num pedestal. Num parto humanizado, essa hierarquia some. A figura do médico ou da parteira traz segurança, claro, mas o papel deles é saber a hora certa que algo pode dar errado e só então interferir. De resto, é a mulher que tem o comando. Mas entendo que o parto domiciliar é ainda estranho pra muitas pessoas. É um tabu. Eu quis instigar a discussão, mostrar que nós, mulheres, podemos parir como quisermos.

Hoje existe essa onda de celebração do feminino, as mulheres olhando pros seus corpos, se apropriando deles. Qual a importância disso? Sinto que tanto no parto quanto na alimentação, e até em outros aspectos da vida, a gente tem que dar um passinho pra trás e resgatar tradições. Voltar à cozinha é um deles, pensar em parto natural também. Não sou submissa porque estou na cozinha. É o contrário. E os pensamentos feministas que me encantam são os que empoderam a mulher e devolvem pra ela o protagonismo. De fato assim temos uma reconexão com o feminino. Pense só: tempos atrás, parto era um ritual apenas de mulheres. Homens não eram bem--vindos, eles esperavam na sala.

Você sempre quis ser mãe? Sim. Mãe de três.

Então virá outro filho? Provavelmente.

E você cresceu numa família grande. Sim. Tenho quatro irmãs e três irmãos. Meu pai teve oito filhos. Crescemos juntos. E mesmo com as minhas irmãs, que são bem mais velhas, a relação sempre foi próxima. Eu era a bonequinha da Preta. [As duas têm 14 anos de diferença.]

Quem cozinhava na sua casa? Não tinha um grande cozinheiro em casa. Mas a gente comia muito bem, comida de verdade. A macrobiótica sempre esteve presente. Meu pai dizia pra gente mastigar superbem, pra não tomarmos muito líquido durante as refeições, não comer muita fruta. Ele não impôs, ele demonstrava sendo exemplo. A casa inteira comia arroz branco, ele comia o integral, comia algas marinhas. A gente achava as algas estranhas. Meu pai é a pessoa que come farofa com hashi. Essa paixão herdei dele, sou apaixonada por farofa, eu e Flor. Já minha mãe tomava refrigerante, comia doce. Então, eu diria que a gente teve o exemplo de uma ótima alimentação, mas sem proibições. Refrigerante era completamente liberado. Eu mesma parei de tomar refrigerante porque não gostava da sensação do gás. Tem mais de 20 anos que não tomo.

E quando você começou a cozinhar? Com 18 anos, quando fui morar em Nova York.

Por que você escolheu Nova York? Não 
teve um motivo específico. A ideia era mesmo aprender inglês. Antes, morei em Paris. Fui com meu namorado, hoje marido, e trabalhei na loja da Natura. Foi meu primeiro trabalho. Eu era uma boa vendedora, a melhor deles.

Você gostava de maquiagem? Não! Fui pra aprender francês e acabei caindo na loja. Eu precisava trabalhar! Como tenho passaporte italiano, foi fácil conseguir emprego. Fiquei seis meses na cidade. Como queria aprender inglês, o João Paulo sugeriu ir a Nova York.

Como você se aproximou do universo “natural”? Pouco antes de ir para a Europa eu tinha descoberto a ayurveda. Fui a uma consulta de ayurveda no Rio. Eu sempre gostei dessas coisas alternativas, não sei explicar o que fui fazer nessa consulta. Mas, a partir daí, mudei minha dieta: parei de comer carne vermelha, parei com o açúcar refinado... E já fui para o exterior com essa cabeça. Nova York tem duas portas: a do junk food e a dos orgânicos. Quando cheguei lá, queria comer bem e não gastar muito. A melhor saída foi aprender a preparar a própria comida.

Mas até então você não cozinhava. Não cozinhava nada. Lá, fiz um curso de culinária natural [no Natural Gourmet Institute] e a faculdade de nutrição [na Hunter College]. Entre o curso e a faculdade, fiz estágio em dois restaurantes veganos, o Candle Café e Candle 79 .

Você foi pra Nova York pra ficar seis meses e ficou oito anos. Por quê? Eu adoro aquela cidade. Nova York é uma excelente janela na vida de uma pessoa, uma cidade que te instiga à competição, à inquietação. Ali, ganhei energia e vontade de fazer. Por outro lado, a cidade te deixa culpado se você não está sempre fazendo alguma coisa. Teve uma hora que cansei dessa vibe, por isso voltei.

E no Rio de Janeiro conseguiu voltar um pouco pro casulo? Acho que sim. O tempo do Rio é muito diferente. As pessoas são mais calmas e eu precisava dessa balança. Mas acho São Paulo o equilíbrio entre NY e Rio.

É mesmo? Você moraria em São Paulo? Moraria. Eu gosto de São Paulo. Nunca imaginei dizer isso na vida, mas sim. São Paulo abraça as coisas com mais vontade. Há, por exemplo, um encontro muito bacana entre produtores e gastronomia. No Rio isso é muito pequeno ainda. São Paulo é uma cidade mais cosmopolita que o Rio.

Agora você está morando em Nova York. Estou. Volto no final deste ano. É um respiro. Pra novas experiências, novos cursos, mais tranquilidade. E tem o fato de que meu marido trabalha lá, é gerente do estúdio do Giovanni Bianco [diretor criativo ítalo-brasileiro, conhecido por trabalhar com nomes como Madonna]. Eu queria ter o Nino perto dele. No Brasil eu também fico engajada em trabalhos e não sou de dizer não. Capricorniana, amo trabalho. Preciso me forçar a parar, às vezes.

“Precisamos ver o consumo como um ato político. As escolhas que fazemos têm processos, devemos olhar pra eles e não só pro produto final”
Bela Gil

Você foi vegetariana por quatro anos. Por que parou? Porque fiquei grávida da Flor e me deu muita vontade de comer carne. Tenho um pouco de conflito com isso. Sei da questão moral, ética, ambiental e política que existe por trás da indústria da carne. Porém, minha saúde não permite. Meu corpo pede por proteína animal. E acabo comendo um ovo, um peixe, um frango ou carne de vez em quando. Não gosto de rótulos. Não quero ser nada. Não quero ser nada porque se me der na telha comer uma carne, vou comer. Se você me perguntar: que tipo de comida você come? Vou responder que como comida natural. Então, por exemplo, se não posso comer um salmão selvagem, não vou comer outro.

Mas seu programa é basicamente vegetariano, por quê? Gosto de tirar o protagonismo da proteína animal. Ela pode, sim, estar presente, mas em uma quantidade menor. A carne como tempero, por exemplo, é maravilhosa. Um pedacinho de bacon no feijão supervale. Mas não podemos continuar a consumir carne como fazemos hoje. É insustentável. Aliás, muito do que consumimos é. Precisamos ver o consumo como um ato político. As escolhas que fazemos têm processos. Devemos olhar pra eles e não só pro produto final na prateleira.

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Vivemos um momento particular do país. Como você se envolve nele? Como é a sua relação com a política? Eu queria até ser mais ativa nesse sentido. Hoje, tento fazer o que posso, o que está a meu alcance. Vejo minha atuação com a comida como uma forma de participar.

Como você vê o impeachment? Foi golpe? É um golpe. Ainda está acontecendo. Me preocupa o futuro, claro. Penso muito no indivíduo e não acho que pra onde a gente está caminhando ele seja prioridade. Temos um governo que pensa menos no homem e mais nas grandes corporações. E essas grandes corporações atrapalham. É muito poder e dinheiro nas mãos de pouquíssimas pessoas. E são elas que decidem a vida da grande maioria. A desigualdade de escolha e poder é que é o problema.

“O problema do açúcar é cultural e político”, diz a jornalista especializada em saúde Sonia Hirsch, sua mentora. Você concorda? Concordo. É cultural porque vicia o paladar quase que instantaneamente. E o brasileiro gosta de açúcar. Temos um paladar escravo do açúcar; a indústria usa isso como uma armadilha e faz produtos gostosos e baratos. O que vem depois é a doença. E doença dá muito lucro. A gente deveria taxar os produtos ultraprocessados com um teor de açúcar maior que o recomendado pela OMS. Deveriam ter advertências no rótulo: “Este produto pode fazer mal à saúde”. E as pessoas dizem: “Ah, mas sua culinária é elitista e você ainda quer encarecer os produtos que os pobres podem consumir”.

“Temos um paladar escravo do açúcar; a indústria usa isso como uma armadilha e faz produtos gostosos e baratos”
Bela Gil

Quem fala isso? Fala-se na internet, nas redes sociais. Mas de fato é uma questão. A gente precisa de políticas públicas que venham interferir no nosso dia a dia. A gente precisa, de repente, subsidiar os orgânicos. Não adianta colocar o refrigerante com o preço lá em cima e a pessoa não ter o que comprar. Tem que ter intervenção pública. Tem que ter reforma agrária. Temos que incentivar os pequenos produtores. O Brasil, como muitos dizem, é o celeiro do mundo. Mas não precisamos ser um celeiro envenenado. O Brasil tem na agricultura a base de sua eco-nomia. Então, por que não fazer uma economia linda, limpa, justa e sustentável? Um dos motivos pelos quais a comida com veneno ainda é mais barata que os alimentos orgânicos é a isenção de impostos para agrotóxicos.

“Tem que ter intervenção pública. Tem que ter reforma agrária. Temos que incentivar os pequenos produtores”
Bela Gil

Sonia também acredita que boa alimentação deveria estar no currículo escolar, assim como química e matemática. E você? Obviamente. Culinária é a arte fundamental da vida. O que é uma cultura sem comida? E acho que, além de estarem no currículo escolar, as aulas precisam ser regionalizadas. No Nordeste, teríamos que aprender sobre o queijo coalho, manteiga de garrafa, seriguela, pitomba. As pessoas precisam aprender a consumir produtos regionais. Fazendo isso, você dá ferramentas de poder. Educação é a base da liberdade de um povo. Como você quer uma sociedade independente, interessante e inteligente se ela não sabe cozinhar? Uma sociedade que não sabe preparar sua própria comida é dependente de uma indústria alimentícia intimamente ligada à indústria farmacêutica.

O que achou da compra da Monsanto pela Bayer? Quer saber!? Não me assustou. Se você pensar como eles pensam, é lógico. A indústria que adoece pessoas precisa da que medica e vice-versa. Pra nós, sobra tanta coisa que não sei nem por onde começar, é horrível!

Você tem um projeto, o Bela Infância. Conta dele? Vou a escolas públicas e privadas, no Rio e em São Paulo, e dou aulas de educação alimentar. E vejo que as crianças estão muito distantes de comida de verdade. Sabe aquele filme Muito além do peso, de 2012? Em que eles mostram crianças confundindo abacate com chuchu? É aquilo mesmo.

“Uma sociedade que não sabe preparar a própria comida fica dependente de uma indústria alimentícia, intimamente ligada à farmacêutica”
Bela Gil

Você filmou recentemente com o Jamie Oliver para o GNT. Gosta do trabalho dele? Adoro. Ele faz um trabalho importante, tanto com as merendas quanto pra educação alimentar de seu povo. Incentiva os ingleses a voltar a comer comida de verdade e a cozinhar em casa. Olho pra ele e sinto esperança. Se ele conseguiu rea-lizar mudanças lá, também posso aqui.

Como vê a parceria que ele fez com a Sadia para o lançamento de uma linha de congelados? Ainda não vi essa linha. Não sei exatamente o que é. Sei o que saiu na imprensa: ele fez uma série de exigências pra mudar a forma como as galinhas são tratadas.

Você acabou lançando uma linha também, com a Mãe Terra. Por que você aceitou fazer? A gente conseguir colocar produtos orgânicos e ingredientes pouco 
conhecidos, como a castanha de baru, o coco licuri, mesocarpo de babaçu, na prateleira do supermercado, e isso é interessante. Outra coisa: essa linha é de produtos que exigem preparo. Não é apenas colocar tudo dentro do microondas. Você precisa abrir a caixa, acrescentar azeite ou leite, preparar e assar, por exemplo. Acho que é uma chance de quem não se interessa por cozinha, mas gosta de alimentação saudável, dar um primeiro passo.

Você faria uma parceria como a que o Jamie fez com a Sadia? Não, não. O Jamie é o Jamie e não importa, ele tem uma imagem sólida. Eu ainda estou em fase de construção. Se eu faço uma parceria dessas nesse momento, muita coisa pode ir por água a baixo. Mesmo que a intenção seja das melhores.

O restaurante Da Bela abriu em julho em dois hotéis no Rio da rede Best Western. O que tem no cardápio? Assino o cardápio do hotel inteiro, desde o café da manhã, room service, frigobar e restaurantes. Tudo passa por mim. Sempre quis ter restaurante, é uma chance 
de as pessoas provarem minha comida. O melhor dessa parceria é que só cuido da cozinha, a parte burocrática fica com o hotel. Em relação aos pratos, obviamente que tem salada de melancia grelhada, coxinha de cará com legumes, tem bolinho de arroz com pesto, quibe vegetariano, guacamole, banana-da-terra frita. É tudo bem parecido com o que faço no programa. O cardápio é 90% vegetariano.

Você tem algum chef brasileiro preferido? Gosto da cozinha do Alex Atala. Ele pegou a comida do Norte do país e levou pro mundo. Fiz uma viagem com ele pra Amazônia, foi sensacional e enriquecedora. Comi a tal formiga, que ele conheceu lá. Tem gosto de capim-limão.

Sobre drogas: alguma te serve? Não consumo nada. A não ser que você considere álcool droga, então consumo droga. Gosto de vinho, existem uns orgânicos maravilhosos, saquê, caipirinha com cachaça de jambu. As pessoas buscam drogas pra transcender, né? Eu faço isso com a meditação transcendental. É a meditação que os Beatles faziam. O David Lynch também propaga essa técnica. Ela tem um lado terapêutico muito forte, além dessa sensação de transcender.

Mas você já provou alguma droga? Maconha. Mas não é uma coisa que me fascina. Lembro que na minha classe do ensino médio, dos 40 alunos, 39 fumavam maconha, menos eu. E lá em casa havia muita abertura pra falar de drogas, então não tinha isso de “preciso usar porque é proibido”.

Há um tempo entrevistamos mães chilenas que plantam Cannabis e fazem um azeite da flor da planta pra dar pros seus filhos com epilepsia refratária. Você é a favor da legalização da maconha? A Cannabis deveria ser liberada para esse fim? Com certeza. A diferença entre o veneno e o remédio está na dose. Sou a favor da legalização de todas as drogas.

Você, que tem uma alimentação supernatural, se comer um algodão-doce, como fica? Nem sei. Bem louca, provavelmente. Por exemplo, eu raramente tomo café, apesar de gostar. Quando tomo, me dá palpitação. Taí: é como se fosse uma droga pra mim.

Por que você quis ir pro YouTube? O que você pode fazer lá que não pode no GNT? Tudo. No YouTube, quem manda sou eu. Quis ir pra lá para alcançar mais gente. Afinal, nem todo mundo tem TV a cabo.

Entre o canal do YouTube, o programa no GNT, os cardápios dos hotéis, os livros e a parceria com a Mãe Terra, o que te dá mais dinheiro? Os livros, com certeza. [Lançados pela editora Globo, Bela cozinha 1 vendeu 190 mil cópias e Bela cozinha 2, 120 mil.]

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Você fez uma série de vídeos sobre zika quando estava grávida do Nino. Recentemente um grupo [de advogados, acadêmicos e ativistas] entrou com um pedido no STF para descriminalizar a interrupção da gestação em casos de mulheres que já tiveram o vírus. Você apoia a ação? Apoio, claro! Na verdade, apoio a descriminalização do aborto e ponto final.

Você começou na ioga aos 14 anos. Dá pra dizer que a prática mudou sua vida, que foi o primeiro passo pra uma mudança radical? Com certeza. A partir do momento que comecei a praticar, portas se abriram. Conheci a ayurveda, porque a ioga está dentro da ayurveda. Conheci e valorizei o Oriente.

Qual você pratica? Comecei com a ashtanga, mas tive um problema no joelho. Hoje, faço os cinco ritos tibetanos.

Você conheceu seu marido aos 15 anos. Ele foi seu primeiro namorado? Foi o primeiro e o único.

E único cara com quem você transou? Sim.

E vocês têm uma relação fechada? Sim, eu espero que sim. [Risos.]

Você abriria? Já pensou nisso? Ainda não. Acho que o casamento vai se transformando e que há muitos casamentos dentro de um casamento só. Tento não ter altas expectativas.

E esse é o segredo pra durar 13 anos? É. O segredo é conter as expectativas em relação ao outro. O casamento vai se renovando. Filho renova casamento.

No Canal da Bela, Preta Gil contou do racismo que sofreu na infância e que ser filha de artista não a livrou do preconceito. E contigo, aconteceu? Senti menos que a Preta. Quase não senti, acho. Pelo menos não que eu tenha ciência. Posso ter sofrido sem perceber.

Teve um dia em que você entendeu que era negra? Isso eu acho engraçado. Não me considero negra e não me considero branca. Sou filha de um negro com uma branca. Por que sou negra e não branca? Sou os dois. Isso é um saco nos Estados Unidos porque você sempre precisa preencher em qualquer documento se é negra, branca ou outro. Sempre coloco outro. Ou eu boto os dois, porque me sinto os dois.

No programa A máquina, do Fabrício Carpinejar, você disse que não tem memórias tristes ou difíceis. É por que de fato não viveu momentos tristes ou difíceis? Sim.

Ser alguém que só viveu boas coisas te faz uma privilegiada ou uma medrosa? Uma privilegiada.

Como está seu pai? Nem a doença [Gilberto Gil foi internado para tratar insuficiência renal] dele é uma memória triste? Ele está superbem. Vai fazer show no fim de semana [Gil se apresentou ao lado de Caetano nos dias 16 e 17 de setembro em São Paulo]. A doença dele abalou sim, mas agora as coisas estão melhores, eu estou ao lado pra cuidar dele, ele está perto dos netos, dos filhos. Isso é o que importa.

Como seu pai ajudou, se é que ele ajudou, a encontrar o seu rumo na vida? O jeito que meu pai leva a vida sempre me encantou. Somos muito parecidos. A gente raramente discorda. Pensamos igual, vivemos parecido. A alimentação, a ioga. Observar isso me inspirou muito. A bagagem dele, o espelho, me guiou. Ele é minha grande inspiração, me deu o livro que mudou minha vida, Autobiografia de um Iogue (1946).

Qual é sua causa, Bela? Ver as pessoas felizes. E uso a alimentação e meu estilo de vida pra isso. Melhorar a vida de alguém, essa é minha causa.

Bibi Ferreira, aos 93 anos, disse que o segredo de sua longevidade é beber Coca-Cola feito água e não fazer exercícios. Tem isso de cada um é cada um, cada corpo é um corpo e não existe fórmula universal? O ser humano é uma máquina individual. E essa é a beleza das medicinas orientais, olhar pras particularidades de cada um pra pensar em tratamentos. O conselho que sempre dou é: autoconhecimento, perceber o próprio corpo. E isso leva tempo e dedicação.

Créditos

Imagem principal: Christian Gaul

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