Síria, mon amour

por Janaina Cesar
Tpm #155

Após fugir da violência de um casamento infantil arranjado, Amani El Nasif hoje ajuda outras mulheres
a enfrentarem a situação

Amani El Nasif tem só 23 anos, mas já é uma vencedora. Quem a vê com sorriso no rosto, não imagina o que passou. Nascida em uma família síria que imigrou para a Itália, muito cedo a garota conheceu a dor, a traição, a violência e a perda da liberdade. Aos 16 anos partiu para o que imaginava ser uma viagem de férias à Síria. Quando chegou lá, descobriu que havia sido enganada pela mãe e fora prometida como esposa a um primo que nunca havia visto. Por 13 meses, a adolescente viveu o inferno no vilarejo da família, onde foi espancada repetidas vezes por não aceitar o casamento arranjado. Foi dopada e só conseguiu fugir para a Itália com a ajuda de um tio, que é professor universitário e percebeu o absurdo da situação.


Amani escreveu um livro sobre a experiência – Siria, mon amour (ainda sem edição no Brasil) – e hoje roda a Itália dando palestras em escolas, bibliotecas, ONGs e livrarias. Sua intenção é ajudar vítimas que vivem em situação parecida. Segundo a ONU, todos os anos 15 milhões de meninas com menos de 18 anos se casam no mundo. A Tpm conversou com Amani em Bassano del Grappa, onde ela vive hoje com o companheiro, Massimo, e a filha Vitória, de 3 anos.

Como era sua vida antes de ir para a Síria? Era normal, como a de qualquer garota italiana. É claro que, vindo de uma família mu-çulmana, algumas coisas me diferenciavam dos colegas da escola, como não poder usar minissaia ou ir a festas de aniversário.

Você sofria discriminação? Os meninos fugiam de mim, não queriam brincar. Minha pele era mais escura e meu cabelo, enrolado. A coisa só melhorou quando cheguei ao ensino médio.

''Quero denunciar o que aconteceu comigo e ajudar outras meninas em situações parecidas''

Você começou a trabalhar cedo. O que fazia? Trabalhava numa papelaria. Amava aquele trabalho. Minha mãe batalhava para criar seis filhos: quatro homens e duas mulheres. Sou a caçula. Com o passar do tempo conheci meu primeiro amor, Andrea. Hoje não estamos mais juntos, mas ele fez parte desse momento, foi agarrada a ideia de revê-lo que tive forças de lutar contra tudo e todos.
Você tinha um estilo de vida bem ocidental. Sim, meus problemas se resumiam a decidir com que roupa sair, que maquiagem usar ou o que dizer à minha mãe se ela descobrisse minha relação com Andrea.

Sua mãe não sabia do seu namoro? No começo não. Quando descobriu, não me deixava mais ir comprar caderno porque era a desculpa que eu usava para conseguir vê-lo. Foi a partir daí que entramos em conflito. Um dia o proprietário da papelaria decidiu me contratar – antes eu era apenas uma estagiária. Fomos falar com o contador, que afirmou que meu sobrenome do passaporte não batia com o de outros documentos. Ele me perguntou se era El Nasif ou Al Nasif. Por causa daquela letra minha vida mudou completamente.



O que aconteceu? Pedi ajuda à minha mãe para arrumar o documento. A única solução seria ir à Síria fazer um novo passaporte. Eu confiava nela, tínhamos nossas discussões, mas nunca pensei que ela estivesse planejando um casamento arranjado. Acreditei que bastaria uma semana em Alepo para resolver a questão e que depois voltaríamos para casa.

Como foi quando chegou lá? Um tio foi nos buscar no aeroporto e nos levou ao vilarejo de meu pai. Foi assustador. Minhas primas todas vestidas de preto, todo mundo sério, um ambiente pesadíssimo. De lá, seguimos para o vilarejo de minha mãe. Cansada da viagem, fui tomar banho, me vesti e minhas tias começaram a rir. Elas falaram que a roupa que eu deveria usar estava na cama. Havia três peças: um vestido transparente, um colorido e um de algodão pesado. Apesar do calor de 40 graus, eu deveria usar os três vestidos juntos.

Qual foi a sua reação? Topei. Eu acha-va que ficaria ali só por uma semana, não me custava nada fazer a vontade dos familiares.

Quando começou a desconfiar de que tinha algo errado? Uma tarde fui à casa de uma prima e escutei meus tios conversando. Ouvi meu nome. Eles me viram e disseram que estavam organizando meu casamento. Meu tio, pai do meu futuro marido, veio para cima de mim e disse: “Você achava que estava de férias? Pois você veio aqui para casar e nunca mais vai voltar para a Itália!”. Saí correndo, peguei meu celular e liguei para o Andrea. Mal nos falamos. Meu tio quebrou o aparelho e me espancou. Aquela seria a primeira de tantas violências que sofreria. Aí comecei uma guerra que durou 399 dias. Quanto mais diziam para me acostumar com a ideia, mais eu me rebelava.

O que você fazia? Eu dizia aos quatro cantos que não casaria com o meu primo, que eu não o amava, que preferia morrer do que casar com ele. Ele e meu tio continuavam me espancando, tudo era motivo para levantarem a mão. As feridas fazem mal, mas cicatrizam. A falta de liberdade não. Era tão forte na minha resistência, que começaram a me dar cortisona como calmante. Por causa disso comecei a inchar.

Assustava você a possibilidade de descobrirem que não era virgem? Sim, essa foi uma das causas que me fizeram segurar a onda, porque sabia que, se deixasse de lutar, poderia morrer. Tive minha primeira relação com Andrea e, para aqueles homens, uma mulher que se casa e não é virgem merece a morte.

Como reagiam as mulheres do vilarejo? Para elas, aquilo era normal. Não porque são más, mas porque era a única realidade que conheciam. Elas nasceram ali, cresceram e absorveram aquela cultura. Não as culpo. Se elas tivessem tido a oportunidade de ir à escola, elas teriam entendido que aquele comportamento violento não é correto.

''Para aqueles homens, uma mulher que se casa e não é virgem merece a morte''


Como fez para fugir? A coisa mudou quando conheci outro tio. Ele e a mulher eram professores universitários. Foi graças a ele que me salvei. Contei minha história e ele resolveu me ajudar.

O que ele fez? Convenceu meu pai a me mandar de volta com minha mãe à Itália. Tivemos que fugir do vilarejo. Quando chegamos ao aeroporto, tive problema com o passaporte. Tive uma crise e comecei a gritar, achei que tivessem me enganado de novo. Até que, finalmente, dois dias depois, conseguimos partir.

Como foi o reencontro com o Andrea? A gente pensa que uma história forte como essa pode ligar duas pessoas para sempre. Mas fomos morar juntos e Andrea tinha tanto medo que alguém me levasse que acabou me enclausurando. Não podia viver naquela situação. Não havia lutado tanto para terminar em outra prisão.

Como é sua vida hoje? É difícil retomar a autoestima, mas estou serena. Tenho Vitória, minha filha, que é a razão da minha vida.

Por que decidiu escrever o livro? Para denunciar o que aconteceu comigo e ajudar ou-tras meninas em situações parecidas.

fechar