Descriminalize já

por Débora Rocha
Tpm #41

A Tpm inaugura um manifesto pela descriminalização do aborto e mostra a realidade de quem fez

Aqui você vai ver a Tpm inaugurando um manifesto pela descriminalização do aborto. Como sempre faz quando acredita que é preciso se posicionar para transformar o mundo num lugar mais digno, a revista resolveu emitir de forma clara a sua opinião. Por um motivo simples: não acreditamos que a mulher que opta por interromper a gravidez seja criminosa, como está escrito no Código Penal Brasileiro, elaborado em 1940 e mais rígido até do que o iraniano no que diz respeito a essa questão. Hoje, o aborto só é permitido no Brasil em caso de estupro ou de risco de morte para a mãe. A mulher que descumprir essa determinação pode ser punida com até três anos de prisão.

Para a Tpm, a discussão sobre a descriminalização transcende abordagens de cunho religioso, ético ou moral. Hoje, ao punir com prisão a mulher que faz aborto, o Brasil se coloca entre os países mais atrasados do mundo nessa questão.

Luz no fim do túnel
No início do ano, o governo federal montou uma comissão para rever o assunto. A expectativa era que se derrubasse o artigo que pune a mulher e que o aborto também fosse legalizado para os casos de anencefalia. Mas a eleição do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) à presidência da Câmara foi um balde de água fria. Católico fervoroso, defensor da proibição do aborto mesmo em casos de estupro, ele tem tudo para ser uma pedra no sapato do processo de atualização da lei, já que pode evitar que o projeto elaborado pela comissão entre na pauta de votação da Câmara.

Mais do que nunca é preciso que nos manifestemos  para reivindicar um direito que é nosso. Na tentativa de fazer nossa parte e iniciar uma discussão séria e rápida sobre o aborto, convidamos quatro mulheres de fibra para entrar no barco e dar cara à luta. A vereadora Soninha Francine, a VJ Penélope Nova, a atriz Vera Zimmermann e a apresentadora Cynthia Howlett fizeram aborto. Tiveram que enfrentar clínicas clandestinas, olhares de reprovação nos hospitais, lidar com culpa, remorso, remédios agressivos.

Nenhuma delas gosta de lembrar o episódio. Mas sabem que não praticaram crime algum. E acham que a hipocrisia é uma das responsáveis pela manutenção dessa legislação arcaica. Estima-se que mais de 1 milhão de mulheres façam aborto no Brasil a cada ano. Ou seja: a ameaça de cadeia não conseguiu inibir a prática. Apenas fez dela algo clandestino e, para aquelas que não têm recursos, extremamente arriscado.

Eu fiz aborto

A atriz Vera Zimmermann, a apresentadora Cynthia Howlett, a vereadora Soninha Francine e a VJ Penélope Nova já fizeram aborto. Um milhão de brasileiras passam pela mesma experiência todos os anos. Segundo nosso Código Penal, escrito em 1940, todas elas estão cometendo um crime. Vera, Cynthia, Soninha e Penélope tiveram a coragem de mostrar a cara porque são a favor da legalização do aborto. Nenhuma delas têm boas lembranças da experiência. Mas sabem que não é com  ameaça de cadeia que vai se conseguir resolver o problema

“Eu tinha 17 anos e estava no ensino médio quando fiquei grávida do meu primeiro namorado, com quem estava há dois anos. Eu era muito nova, por isso decidi fazer. Tive total apoio da minha mãe, que sempre conversou muito comigo sobre essas coisas. Eu era jovem e sem muita noção das coisas e minha mãe me deu suporte. Mas tudo depende do momento. Hoje já não faria, embora não me arrependa de ter feito. Lembro que passei um período difícil depois do aborto. Não queria ir para a aula, nem sair de casa – era como uma depressão. Durou uns dois meses e aos poucos fui voltando ao normal. Não ficou como um trauma, até porque, na época, conversei muito com a minha mãe. Não penso mais sobre isso. É uma hipocrisia o aborto não ser legalizado. De dez amigas, nove já fizeram. Então, que seja feito com cuidado, com pessoas experientes. A mulher tem que ter liberdade de escolher se quer ou não fazer um aborto.”
Cynthia Howlett
, 27, é apresentadora do SporTV

“Fiz um aborto aos 26 anos. Não estava preparada, psicológica nem financeiramente, para ter um filho. Além disso, meu namorado não era o cara que eu sonhava para ser o pai de um filho meu. Eu morava em São Paulo, ele no Rio, era complicado. Quando soube que estava grávida, não tive a menor dúvida de que iria abortar. Ele me apoiou, também não queria um filho. Fiz o aborto numa clínica em São Paulo e correu tudo superbem. Fui com uma amiga que já tinha feito e me indicou o lugar. Meu namorado estava viajando e, apesar de a minha mãe ser superliberal, achei melhor ter a companhia de uma amiga. Não me arrependo de ter feito e, se precisasse, faria de novo. Não me senti nenhuma criminosa. A única coisa que pensei é que aquilo não poderia acontecer de novo, tinha que ser uma exceção. Sou totalmente a favor da descriminação do aborto. Mas sou contra a banalização da intervenção. Não dá para encarar como uma prática normal, que pode ser feita sempre que a mulher tiver vontade. Tem muita garota novinha que faz aborto sem apoio nenhum da família. Isso está errado, a mãe precisa se aproximar dos filhos, conversar sobre sexo e outros assuntos polêmicos. Além disso, no Brasil, aborto é questão de saúde pública. Muitas mulheres morrem porque não têm dinheiro e recorrem a métodos perigosos. Prefiro o aborto a colocar uma criança no mundo sem condição de cuidar e educar decentemente.”
Vera Zimmermann, 40, é atriz

“Fiz um aborto quando fiquei grávida pela terceira vez. Tinha duas filhas, ainda não tinha entrado em contato com o budismo e meu casamento estava acabando. Já estava tudo muito difícil, não ia conseguir levar aquela gravidez adiante. Falei com uma amiga que já tinha feito, e ela me indicou o médico. Tinha muitas dúvidas, mas minha amiga me disse que passou pelas mesmas encanações e que, por isso, depois do aborto, pediu ao médico para ver o feto. Como estava com menos de cinco semanas de gravidez, a única coisa que ela viu foi sangue. Isso me tranqüilizou. Fui ao consultório, que era perto do metrô, no Largo da Concórdia. Meu marido foi comigo. Chegamos, entrei numa sala, e o médico raspou meu útero com uma espécie de colher. Demorou uns 15 minutos. Doeu, doeu, doeu e aí acabou. O médico perguntou se eu estava me sentindo bem e disse que eu podia ir embora. Na primeira menstruação depois do aborto tive hemorragia. Fui para a Beneficência Portuguesa. O médico que me examinou perguntou se eu estava grávida. Disse que tinha feito um aborto 15 dias atrás. Ele falou que talvez tivesse que fazer uma nova curetagem. Alguma coisa tinha dado errado. Fiz a curetagem, com anestesia, tudo como uma operação comum. O ultra-som acusou ‘restos de abortamento’, que merda. Passei uma noite no hospital e fiquei pensando que coisa grotesca eu tinha feito. Não queria que ninguém soubesse, estava com muita vergonha. Não era nem porque eu poderia ser presa, era vergonha mesmo. Hoje, tenho certeza de que não faria outro, mas naquela época foi muito decidido. O budismo, a religião que sigo, diz que você não deve tirar a vida de nenhum ser. Para o budismo, o feto, a célula fecundada, é um ser. Mas não há como negar: as pessoas fazem aborto. E, quanto mais escondido, maior o risco. Se você se espeta com uma agulha de crochê no banheiro da rodoviária é grande a chance de ter uma infecção. Então, a melhor coisa a fazer é tentar diminuir o número de vidas perdidas nesse processo. Para mim, não é o caso de uma defesa do tipo ‘cada um faz com o seu corpo o que quiser’. Não acho que a mulher é a dona do seu corpo e foda-se o que ela faz com ele. Mas o fato de ser considerado crime provoca inúmeras mortes, e isso não é bom. Acho que o ideal seria descriminar, mas sem liberar geral. Aborto é uma questão de saúde pública, mas deve ser tratado como exceção.”
Soninha Francine, 37, é vereadora em São Paulo e apresentadora da ESPN

“Fiz aborto duas vezes. A primeira foi em 1989, com 15 anos. Na época, não se usava camisinha como hoje. Engravidei do meu primeiro namorado, com quem tinha perdido a virgindade. O namoro já havia acabado quando soube que estava grávida. Era muito nova e não via sentido em ter um filho naquelas circunstâncias. Meu ex só soube depois que eu já tinha feito o aborto. Não contei antes porque tive medo de que ele quisesse ter o bebê. A única pessoa que ficou sabendo foi minha mãe, que já morava na Itália, e sempre foi muito minha amiga. Decidi fazer com Cytotec, que na época era vendido em farmácias sem a necessidade de receita. Todo mundo sabia que aquele remédio para úlcera induzia o organismo a iniciar um processo de contrações similar a um aborto natural. Estava com cinco semanas e achei bem menos arriscado o remédio que o aborto em clínicas, mais invasivo. Depois de tomar, senti cólica por meia hora. Não tive hemorragia nem arrependimento, sei que foi a decisão certa. Não vejo sentido em ficar pensando como teria sido minha vida com um filho indesejado – e não gostaria de ser um. Provocar um aborto não é uma coisa natural, não é saudável e não é gostoso. Não acho que o aborto deva ser incentivado, mas também não cometi nenhum crime. É por isso que defendo a descriminação. E não apenas em meu nome, mas em nome das mulheres que vêem no aborto a única alternativa, a ponto de enfiarem uma tesoura na vagina para poder provocá-lo. A educação funciona, mas a médio/longo prazo. Quando a educação cumprir seu papel, o número de abortos vai cair naturalmente. As questões de cunho religioso/espiritual devem ser respeitadas tanto quanto o direito de ter ou não outras convicções. Aos 26 anos, optei pelo aborto uma segunda vez. Eu usava DIU e estava namorando há algum tempo, por isso transava sem camisinha. Dessa vez fui ao meu médico e disse que queria fazer um aborto. Mesmo ele não sendo pró-aborto, me orientou para tomar o Cytotec porque concordou que a pílula era menos invasiva que a intervenção. Mais uma vez, não me causou nenhum trauma. Fui prevenida, mas não tinha vontade de ter filho sem um pai presente. Não acredito que bastam condições financeiras. E não gostaria de ser mãe solteira, porque acho que a responsabilidade de gerar alguém vai além da capacidade de procriar. Já vivemos num mundo com gente estourando pela tampa e sequer sabemos até quando haverá água para todos.”
Penélope Nova, 31, é VJ da MTV

Tira-teima
O debate sobre a descriminação do aborto continua sendo mais moral que técnico. Para você entender em que pé estão nossas leis, consultamos especialistas no assunto e elaboramos o questionário abaixo. Leia, reflita e decida qual a sua posição

Alguma mulher já foi presa por ter feito aborto?
Sim, embora não seja um fato comum. Um dos episódios mais graves aconteceu em dezembro de 2002. Uma desempregada, de 27 anos, foi algemada à cama de um hospital estadual da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, porque a médica encontrou dois comprimidos de Cytotec em sua vagina. A médica chamou a polícia, que a algemou enquanto ela ainda estava com hemorragia. Depois da alta, foi direto para a cadeia, onde ficou três meses detida. Hoje responde o processo em liberdade. 

O que diz a lei sobre aborto?
O Código Penal Brasileiro, de 1940, diz que provocar aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa provoque é crime (art. 124). A pena para a mulher varia de 1 a 3 anos de cadeia. O médico que realiza aborto com permissão da paciente pode ser punido com detenção de 1 a 4 anos (art.126). Já a pessoa que provoca aborto em outra sem o seu consentimento está sujeita à pena de 3 a 10 anos (art. 125). Em ambos os casos, se a gestante sofrer lesão corporal, a pena aumenta um terço. Se morrer, a pena dobra (art. 127). Hoje o aborto é legal apenas para casos de gravidez resultante de estupro ou se a mulher corre risco de morte (art. 128).

O que o governo irá propor?
A comissão tripartite criada pelo governo federal em fevereiro, com representantes do Executivo, do Congresso e da sociedade civil, pretende alterar alguns pontos da legislação punitiva. Embora alguns integrantes lutem pela legalização plena do aborto, a Secretaria de Política para as Mulheres não pretende levar a discussão até a liberação total. Provavelmente, a comissão irá propor a revogação do artigo 124, que incrimina a mulher, para garantir um atendimento pós-aborto mais digno na rede pública. É possível que se proponha a liberação do aborto para casos de fetos com anencefalia e para quando não houver chances de sobrevivência para o feto – ampliando o que já diz o artigo 128. Também deve ser proposta alteração no artigo 126, que pune o médico que faz aborto com consentimento da paciente, embora a questão ainda não tenha sido fechada. Os artigos 125 e 127 deverão ser mantidos.

Quanto tempo deveremos esperar até que a lei seja de fato mudada?
No momento, a comissão tripartite está analisando os 48 projetos de lei sobre aborto que tramitam no Congresso para decidir se elaboram um novo projeto ou se algum dos já existentes pode ser aproveitado. Depois que as discussões chegarem ao fim, o projeto da tripartite será encaminhado para votação na Câmara e no Senado.

Como a eleição do deputado Severino Cavalcanti à presidência da Câmara dos Deputados pode atrapalhar as mudanças na lei?
Católico fervoroso, o deputado federal Severino Cavalcanti (PP-PE) é autor de um projeto de lei que proíbe a prática do aborto até nos casos de estupro. Em tese, ele pode adiar indefinidamente que o projeto entre na pauta de votação da Câmara. A menos que o Executivo apresente o projeto sob regime de urgência constitucional. Nesse caso, a Câmara dos Deputados e o Senado teriam 45 dias cada, no máximo, para votar a questão.

Como fica a situação dos médicos se o aborto for descriminado?
Se o artigo 126 cair, os médicos não estarão mais sujeitos às penalidades do Código Penal – ou seja, não poderão ser presos. Mas, a menos que a prática seja legalizada, continuam sujeitos a punições do Conselho Federal de Medicina, que variam da suspensão temporária da atividade até a cassação do registro.

Por que as leis brasileiras sobre aborto estão em desacordo com os compromissos assumidos com a ONU? 
Na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, o Brasil assinou um documento em que se comprometia a dar atendimento médico humanitário em seus hospitais às mulheres que recorressem ao aborto. Há dez anos, durante a Conferência Mundial de Mulheres, em Pequim, o país foi além e se comprometeu a reformar as leis que prevêem medidas punitivas contra mulheres submetidas a abortos. Uma década se passou e, até agora, nada foi feito.

Fontes: Silvia Pimentel, vice-presidente do Comitê Sobre a Eliminação da Descriminação Contra a Mulher, da ONU; Fátima Oliveira, diretora da Rede Feminista de Saúde; Jorge Andalaft Neto, presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei, da Febrasgo; Pablo Chacel, corregedor adjunto do Conselho Federal de Medicina; deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ); Secretaria Especial de Política para as Mulheres

Faça a sua parte
Severino Cavalcanti, presidente da Câmara dos Deputados, é contra a descriminação do aborto. O presidente da Comissão de Seguridade Social e Família, Benedito Dias (PP-AP), também. Juntos, eles podem fazer com que o projeto caia no limbo. Não custa nada lembrá-los de que foram eleitos para permitir o debate, não para congelá-lo em nome de convicções pessoais. Ponha seu teclado para funcionar e encha a caixa postal dos dois de mensagens pró-debate: dep.severinocavalcanti@camara.gov.br e dep.dr.beneditodias@camara.gov.br

O mapa da lei
Saiba como funciona a legislação sobre o aborto no mundo

VERMELHO
Irlanda - Permitido apenas nos casos em que a gestante corre risco de morte.
Chile - Não é permitido em hipótese nenhuma. O mesmo acontece em El Salvador e na maioria dos países africanos (à exceção da África do Sul e Tunísia).

AMARELO
Polônia - É considerado crime e só pode ser legalmente praticado se a gestante corre risco de morte, se o feto estiver irreparavelmente prejudicado, nos casos de incesto e de estupro.
Portugal - Permitido até a 24ª semana somente em casos de malformação do feto ou quando a gestante corre risco de morte. Até a 16ª, também vale para casos de estupro ou se a mulher for menor de idade. Em quaisquer outras circunstâncias é considerado crime.
Brasil - Só é permitido nos casos de risco de morte da gestante ou de estupro. Em qualquer outro caso, é crime, com pena de 1 a 3 anos de prisão para a mulher e de 1 a 4 para o médico.
Irã - Desde o ano passado, é permitido apenas em caso de risco de morte da mãe ou malformação fetal e se feito nos primeiros quatro meses de gestação, quando os muçulmanos acreditam que a alma “entra” no corpo. Fora desse período, é crime.

VERDE   
Holanda - Permitido desde 1981 para todos os casos desde que a mulher esteja até a 22ª semana de gestação. Depois disso, é proibido por lei. É gratuito em hospitais públicos.
França - Desde 1974, permitido em qualquer circunstância contanto que realizado até a 12ª semana. O mesmo acontece na Itália e na Bélgica
Suécia - A Suécia foi o segundo país europeu a garantir o direito de escolha à mulher, em 1938, três anos depois da Islândia. É permitido desde que realizado até a 18ª semana.
Reino Unido - Permitido desde 1967 contanto que efetuado até a 24ª semana.
Suíça - Desde 2002 é permitido em quaisquer circunstâncias até a 12ª semana.
África do Sul - Desde 1996, permitido em qualquer circunstância contanto que realizado até a 16ª semana. Depois disso, só se a gestante correr risco de morte ou se o feto possuir graves anomalias.
Tunísia - Permitido desde que realizado até o 4º mês.
Japão - Desde 1948, o aborto é legal se realizado até a 22ª semana.
China - Desde 1975 é permitido em todos os casos, mas só até 14ª semana.
Cuba - Ao lado de Guiana, Barbados, Porto Rico e algumas ilhas do Caribe, Cuba permite a interrupção da gravidez por escolha da mulher. Em qualquer época e em qualquer circunstância.
EUA - Lei federal dá o direito de escolha à mulher, mas os Estados mais conservadores, como Utah e Texas, tentam restringir a prática desautorizando o serviço público a pagar por ela.

Entre quatro paredes
A Tpm passou a manhã numa clínica ginecológica em Copacabana que realiza abortos. Abaixo, você acompanha em detalhes a rotina clandestina

Reportagem Danielle Nogueira

Quem passa pelo lado de fora nem imagina. Na porta, uma placa com o nome do médico e sua especialidade indica apenas que ali funciona um dos muitos consultórios ginecológicos cariocas. Mas é naquele quinto andar de um prédio comercial de Copacabana que centenas de mulheres encontram respaldo para burlar a lei e fazer valer seu direito de escolha. Do corredor, é possível enxergar através da porta de vidro uma pequena ante-sala, com uma mesa à esquerda, um sofá de dois lugares à direita e uma porta de madeira maciça ao fundo. Nada mais. Nenhuma revista, nenhum paciente, nem mesmo uma secretária. Só quando se toca a campainha é que a atendente aparece. Não é preciso marcar hora. Se houver espaço na agenda, a paciente será bem-vinda.

Em geral, elas chegam com a mãe ou o namorado. Mas os acompanhantes não passam da ante-sala. Gentilmente, a secretária pede para que eles aguardem na rua e toma nota de um telefone em que possa encontrá-los para avisar quando a cirurgia tiver acabado. Somente depois que os acompanhantes deixam o consultório é que a moça pega o telefone e pede ao doutor que libere a entrada. Ouve-se um estalo e a porta de madeira se descola, abrindo passagem para a verdadeira sala de espera.

É nessa sala que as meninas, a maioria entre 16 e 25 anos, aguardam o momento do aborto. Há uma TV e revistas sobre uma mesa central, mas ninguém se distrai lendo nem assistindo a um filme. O clima é tenso, e o silêncio cortante. Tudo é registrado por câmeras. Afinal, detectar comportamentos suspeitos pode evitar um flagrante.

O expediente é curto: de segunda a sexta, das 7h às 11h. Em média, são feitos cinco abortos por dia. À tarde, o médico atende pacientes para exames de rotina. A maioria não sabe o que acontece ali antes do meio-dia.

Chegada a hora, a secretária acompanha a paciente até uma outra sala. Num pequeno banheiro, ela se despe e veste um avental verde. O médico faz perguntas básicas como nome, bairro onde mora, tempo de gestação. Também questiona se a mulher tem certeza de que quer fazer o aborto. Tudo é escrito em uma folha de bloco. Não se faz cadastro das pacientes, pois dificilmente elas voltarão para uma revisão. A maioria está lá para uma única “consulta”.

Exames geralmente requisitados em casos de cirurgia, como eletrocardiograma e exame de sangue, são dispensados. A única exigência são as 12 horas de jejum. Se a paciente não levar exame que ateste a gravidez, não há problema nenhum. A gestação é comprovada na hora, através do toque, que permite ao médico avaliar a idade do feto. É disso que depende o preço do aborto. Até dois meses, R$ 800. Com três meses, R$ 900. A partir daí, a operação não é recomendada em consultório. O pagamento é feito em espécie, antes da cirurgia. Uma vez efetuado, o médico leva a paciente para uma quarta sala, onde há uma cama e um sofá. É lá que as meninas repousam após a cirurgia.

O médico é também o anestesista. A operação dura cerca de dez minutos e é preciso mais meia hora para a paciente voltar plenamente à consciência. Não se sabe o que é feito com o embrião nem com os tecidos removidos. As clínicas têm receio de dizer que destino dão aos restos. Quando a paciente desperta, é levada de volta à sala de espera, através de uma outra porta, para não passar pelo consultório novamente, onde o médico decerto já está atendendo outra pessoa. A secretária se encarrega de levar suco ou leite e um pouco de biscoito para as que já fizeram o aborto. O lanche é tomado na sala de espera, onde a paciente aguarda os parentes ou amigos que a levaram ao consultório. No reencontro, é freqüente um certo nervosismo e algumas lágrimas costumam escorrer pelo rosto das mais jovens. Depois que elas se acalmam, deixam o consultório caminhando. Como quem sai de uma consulta.

Sem culpa
Todo dia, há 30 anos, ele atende mulheres decididas a interromper a gravidez. Para ele, esse procedimento é tão ético quanto os partos que realiza diariamente

por Renata Leão

Apesar de ser um dos ginecologistas obstetras mais requisitados de São Paulo, este médico não pode ter seu nome revelado nesta reportagem. Caso contrário, vai se complicar com a Justiça. Há mais de três décadas, o doutor M., como vamos chamá-lo aqui, faz abortos. Num consultório confortável, ele intercala consultas comuns a “pequenas cirurgias”, como se refere ao procedimento que usa para atender aos pedidos das mulheres que ali chegam com o desejo de interromper a gravidez.

Cinqüentão simpático e educado, doutor M. recebeu a reportagem da Tpm por três vezes e topou contar o que se passa em sua cabeça a respeito das mulheres que lhe batem à porta diariamente. Diz que a maioria das pacientes chega angustiada, desejando uma solução rápida. “Nunca tive crise de consciência porque sei que estou resolvendo o problema da pessoa”, conta. “No que toca a ética, não vejo diferença entre fazer um aborto ou um parto.”

Ele, que realiza cinco abortos por dia há mais de três décadas, fala que já aprendeu muito com suas pacientes. “Depois de 30 anos de carreira olhando nos olhos de todas que se sentaram à minha frente nesta mesa, cheguei à conclusão de que, quando a mulher está decidida a tirar um filho, ela vai tirar e pronto.” Ainda que a maioria chegue decidida, doutor M. conta que já houve várias ocasiões em que, percebendo a hesitação da paciente, aconselhou que voltasse para casa e pensasse melhor. “Faço isso quando sinto que a cliente não está convicta.” Volta e meia, ele mesmo termina realizando o parto. Uma dessas pacientes tem hoje um filho de 17 anos. Não fosse o feeling do doutor, o rapaz não teria nascido. “Toda mulher que vai interromper uma gravidez está numa situação de conflito. Trata-se de um questionamento de fórum íntimo que nada tem a ver com cultura, credo ou formação religiosa. As mulheres que realmente querem abortar estão perturbadas, mas nunca em dúvida. Chegam ao consultório com os olhos arregalados, com olhar de desespero, querendo resolver o problema. Quando não é assim, mando voltar pra casa.”
   
Ex-advogado
Filho de um médico e de uma dona de casa que há 20 anos se tornou sua assistente na clínica, doutor M. cresceu num casarão do bairro da Vila Mariana, área nobre da zona sul paulistana. Estudou em bons colégios, fez faculdade de direito na USP, se formou advogado aos 22 e se casou um ano depois. Aos 24, foi pai da única filha que tem. Dois anos depois, perdeu a esposa num acidente de carro. Desnorteado, resolveu largar a vida de advogado e prestar vestibular para medicina. Foi aprovado numa faculdade em Minas Gerais, deixou a filha com os pais e, durante cinco anos, dedicou tempo integral à medicina. No fim do curso, decidiu se especializar em ginecologia e obstetrícia.

Seu primeiro contato com um aborto aconteceu bem antes disso. Foi aos 18 anos, quando a namorada, um ano mais velha, engravidou. Ele ainda morava com os pais, havia acabado de ser aprovado na faculdade de direito, e achou que não era a hora de ter um filho. A moça, de família tradicional, não queria que os pais soubessem de nada. Coube ao futuro doutor descobrir um médico para resolver a questão. “Fomos a um lugar horroroso, filme de terror mesmo. Era na periferia de São Paulo, e o cara fazia tudo numa cozinha, sem luva, sem higiene, sem nada”, lembra. “Amarraram um pano na boca da menina para ela não gritar. Isso me chocou muito e eu saí pensando: ‘Por que tem de ser assim?’. Foi quando entendi que, embora fosse uma contravenção, o aborto era uma questão de saúde pública.”

Depois de formado, doutor M. montou um consultório, formou clientela e começou a exercer a profissão sem pensar em realizar abortos. Até que uma amiga da faculdade foi violentada, engravidou e pediu sua ajuda. “Nem pensei duas vezes, claro que fiz o aborto”, diz. Em seguida, começaram a surgir casos de malformação fetal, alterações genéticas, anencefalia. “Tinha uma filha saudável e me colocava no lugar daqueles pais. Já pensou que legal ficar nove meses gerando um bebê sem cérebro que vai nascer e morrer logo em seguida?” Não demorou muito, apareceram outros casos, dessa vez “sociais”, como ele define. “Primeiro foi uma prima, depois vieram outros parentes, amigos próximos. Quando me dei conta, tinha formado uma clientela.”

Ex-católico
Doutor M. conta que todos seus colegas sabem que ele faz abortos. “Nunca tive problemas com isso e nunca escondi nada de ninguém. Alguns médicos, os falsos moralistas, viram a cara. Mas minha família toda sabe o que faço e me respeita.” Quando fala sobre a família, o médico interrompe por alguns segundos a conversa e mostra o retrato de uma menina de 4 anos sobre a mesa. Conta que aquela é sua única neta e que foi ele quem fez o parto.

Dez anos antes, também havia feito um aborto na filha. “Ela estava com 19 e tinha acabado de entrar na faculdade. Quando veio me contar que estava grávida, tive o cuidado de não manifestar minha opinião. Temi que quisesse ter, mas não falei nem demonstrei nada.” Ela não quis e pediu para que o pai fizesse o aborto. “Caso não tivesse optado por isso, não teria curtido a juventude como fez, não falaria três línguas e não teria estudado tanto”, revela o médico, que foi batizado na Igreja Católica, cresceu com o pai espírita e hoje acredita em “energia cósmica”.

“Se existem um ou mais deuses e se ele ou eles são bons, com certeza querem que os homens sejam felizes. O maior pecado é não ser feliz”, opina, antes de emendar: “Errado é não poder usar o discernimento e a liberdade de arbitragem que as igrejas tanto falam e fazer coisas que vão contra sua consciência”.

Doutor M. explica que o prazo-limite para que se realize um aborto é de 16 semanas. “Depois disso, além de ser arriscado para a mãe, as chances de ela ficar psicologicamente abalada são maiores”, adverte. O procedimento é simples e raramente dura mais de 20 minutos. “Gasto mais tempo conversando com as pacientes do que na cirurgia em si. Além de ter por lei direito a interromper a gravidez quando assim desejarem, acho que as mulheres também precisam de um bom acompanhamento psicológico. Ninguém fica feliz da vida por ter feito um aborto.”

Pílula do dia seguinte
Desde que usada com critério e moderação, esta é a segunda maneira mais eficaz de evitar uma gravidez indesejada. A primeira? Usar camisinha, DIU, anticoncepcional.

A pílula do dia seguinte passou a ser comercializada no Brasil em 1999 e, desde então, seu consumo não pára de crescer. Só nos hospitais da rede pública, foram distribuídas 352 mil cartelas ano passado. Como cada cartela é suficiente para uma aplicação, pelo menos 352 mil mulheres fizeram uso desse artifício para evitar uma gravidez indesejada. Isso só na rede pública.

Para fazer efeito, a mulher deve ingerir o primeiro comprimido até 72 horas após o ato sexual. A segunda pílula deve ser tomada 12 horas depois da primeira. Se essas regras forem cumpridas, há 85% de chances de se evitar a concepção. A menstruação deve chegar até 15 dias depois do uso da pílula. Se atrasar mais que isso, é preciso fazer exame de gravidez.

Cada pílula equivale a seis comprimidos anticoncepcionais de média concentração. Ela age de duas maneiras. Se a concepção ainda não ocorreu, a pílula dificulta o encontro do espermatozóide com o óvulo. Se já ocorreu, provoca uma descamação do útero, impedindo a fixação do ovo fecundado. Como em ambos os casos ela age antes de o ovo se fixar no útero, a maior parte dos especialistas afirma que ela não é abortiva. A Igreja Católica discorda porque acredita que a vida começa já no momento da fecundação. Embora tenha começado a ser comercializada em farmácias só há cinco anos, uma espécie primitiva da pílula vinha sendo usada desde os anos 70 para que vítimas de estupro não engravidassem. Os médicos aconselhavam às pacientes que tomassem 11 comprimidos anticoncepcionais durante os quatro dias seguintes ao estupro para evitar a gravidez. Com o tempo, essas doses hormonais foram concentradas em duas cápsulas, e a elas se deu o nome de contraceptivo de emergência. Hoje, oito laboratórios fabricam a droga, vendida comercialmente com nomes como Postinor, Pilem e Pozato.

O uso indiscriminado da pílula tem preocupado os médicos, pois a alta descarga de hormônios desregula a menstruação, pode causar depressão e enxaquecas. “Tomar mais que uma vez no mês já é abuso”, afirma a ginecologista Albertina Duarte, 56, coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo.

O que a leitora pensa
Abrimos no site da Tpm uma discussão sobre aborto. durante quase dois meses, recebemos 200 emails. Selecionamos aqui alguns dos posts colocados por nossas navegantes

“Acho que essa é uma escolha da mulher, não do governo. Mulheres sem dinheiro para pagar uma clínica também abortam. E das maneiras mais grotescas e perigosas”
Elaine Grazielle de Santana, 25 anos, fotógrafa, São Paulo

“É cruel pensar que estaremos tirando uma vida de dentro de nós, mas seria ainda mais cruel deixar essa criança privada de uma boa condição de vida”
Gabriela Cardoso da Silva, 23 anos, telefonista

“Acho que o aborto é um sinal de egoísmo. Ao se pensar apenas no bem-estar da mãe, esquecemos que existe uma outra vida que tem o direito de nascer”
Rouseane Batusanshi, 27 anos

“As mulheres de classe alta têm recursos para pagar médico e clínica decentes. Enquanto isso, as mais pobres se arriscam na mão de açougueiros”
Rossana da Silva, 20 anos

“A mulher é totalmente dona do seu corpo, da sua mente e da sua alma. Nem a justiça, nem a Igreja possuem poder sobre a sua decisão, que é única e intransferível”
Vânia Cristina Porto

 

Legalizado, mas não legal
Descriminar o aborto não significa que a prática deva ser encara como opção contraceptiva

Como você deve ter percebido ao longos das reportagens, a Tpm espera que as leis sobre abortor sejam revistas e modernizadas o mais rapidamente posssível. Mas também espera que, quando isso acontecer, a interrupção da gravidez não seja banalizada. O aborto não pode e não deve ser usado como método contraceptivo. Primeiro porque, mesmo quando realizado com toda segurança, deixa sequelas - se não físicas, certamente psicológicas. E para que se submeter a uma intervenção cirúrgica, se há meios extremamente eficazes - e seguros - de evitar uma gravidez indesejada?

Na Holanda, um dos países que primeiro legalizou a prática e onde o Estado dá total apoio àquelas que fazem aborto, apenas uma em cada 200 mulheres opta pela intervenção - um dos índices mais baixos do mundo. No Brasil, abortos clandestinos e realizados em condições não adequadas já são a terceira causa de mortalidade materna. Se o aborto deixar de ser cime, a expectativa é que essa estatística possa ser apagada de vez da nossa história, já que nenhuma mulher precisará recorrer a expedientes truculentos e primitivos como usar agulhas e chás tóxicos para provocar aborto. Mas também não podemos tolerar, que a cirugia se torne método contraceptivo. Hoje, mesmo com a proibição, mais de 1 milhão de mulheres fazem aborto no Brasil. É muito.

É preciso que se entenda que sexo seguro, o sexo que não dispensa em hipótese alguma o uso de camisinha, não pode ser substituído em hipótese alguma o uso de camisinha, não pode ser substituído pela possibilidade de se fazer aborto legalmente. Temos hoje a nosso alcance pelo menos meia dúzia de opções contraceptivas, que vão da camisinha à pílula, passando pelo diafragma até chegar à velha tabelinha. Portanto, não é razoável que, ao negligenciarmos o uso de pelo menos algum desses métodos, saiamos esbravejando contra a indiscutível injustiça de leis criadas há mais de 60 anos.

Achamos também que a discussão sobre a legalização do aborto deve passar ao largo de preceitos religiosos. Trata-se de um direito individual da mulher, independemente de credo ou crenças espirituais. Por isso, escolhemos não abordar, durante essa discussão, aspectos religiosos. A Tpm é, e sempre será, a favor da liberdade individual.

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