Retorno à crueldade

por Debora Diniz

Proposta de lei tem por alvo forçar a prisão de mulheres que abortarem em caso de estupro, ou mesmo condená-las à morte em caso de risco de vida na gravidez

Os momentos de crise desorganizam o pensamento. Desde 1940, uma mulher que sofre a grave violência do estupro é protegida pelo Estado para não ir para a cadeia se fizer um aborto. Para uns, é o “direito de decidir”, para outros é “proteger a saúde mental”, para muitos é “garantir a dignidade das mulheres”. Para uns poucos, indiferentes ao sofrimento da vítima, essa mulher deveria ser presa se decidisse não manter uma gravidez do homem que a violentou. Ou uma mulher deveria morrer se a gravidez lhe impuser risco à sobrevivência.

Basta imaginar essa mulher, a cena brutal de um estupro, para nos darmos conta que esse seria um retorno pré-civilizatório da sociedade brasileira. É mais do que um retorno ao passado: é um gesto de crueldade às mulheres – prendê-las porque foram estupradas e não querem se manter grávidas? Deixar uma mulher que seja mãe de outras crianças morrer, pois não poderia interromper a gestação em risco de vida?

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Há uma proposta de lei neste sentido em curso no Congresso Nacional. É chamado de “Estatuto do Nascituro” – assim como há crianças, adolescentes, mulheres, homens, idosos, haveria o nascituro. Nascituro é quem ainda não nasceu, um embrião ou feto em desenvolvimento. A proposta dos legisladores é oferecer um marco legal amplo ao nascituro, semelhante ao que há para as pessoas com deficiência, para as crianças e adolescentes, para os idosos.

A disputa é religiosa, e tem por alvo forçar a prisão de mulheres que abortarem em caso de estupro, ou mesmo condená-las à morte em caso de risco de vida na gravidez. Não há preocupação na boa maternidade ou na estabilidade familiar, como, por exemplo, propor a universalidade da creche pública de 0 a 6 anos ou ampliar o tempo de licença maternidade. Um Estatuto das Mulheres seria mais atento aos esquecimentos de quem dá mais valor às crenças religiosas que às mães de carne e osso.

Não podemos deixar que a crise nos desorganize o pensamento. O que o Estatuto do Nascituro propõe é grave e ultrajante às famílias. Mas, se for aprovado, pode ser imediatamente revisto pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse meio tempo, estou segura, uma intensa mobilização social mostrará o escândalo deste retrocesso.

Antes dessas idas e vindas, o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de resolver o que aflige como escondido no Estatuto do Nascituro. Ministra Rosa Weber tem uma ação para descriminalizar o aborto até 12 semanas de gestação. Se é verdade que as crenças religiosas importam, é também verdade que a dignidade e a vida das mulheres importa muito.

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