por Madson de Moraes

Nosso repórter fez o curso que forma mulheres (e homens) numa tradição quase esquecida: a das benzedeiras. Antenadas com as novas mídias, agora dá pra benzer até via WhatsApp

Na sobreloja de um espaço destinado à dança do ventre em Santana, zona norte da capital paulista, um grupo de mulheres se reúne para manter uma tradição bem antiga: a das benzedeiras. Confiro o kit pedido: um pano, uma vela e rosa branca e um ramo de alecrim. Subo as escadas e dou de cara com Amadeu, o único homem, além de mim, que fará parte do curso de benzedeira que vou viver nas próximas seis horas.

A figura da benzedeira na minha cabeça sempre esteve circunscrita a senhorinhas simpáticas sacolejando galhos de arruda diante de alguém necessitado de espantar alguma zica. Mas as mais de vinte mulheres que estão ali, a maioria jovens, desmistificam de cara essa imagem.

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É o caso de Bárbara Schrage, a Babi. Ela viu alguém se interessar pelo evento criado por Rose no Facebook quando, dias antes, tinha colocado na cabeça que queria aprender a ser benzedeira. Comento como é maluco o mundo e ela dispara a frase que considera a da sua vida (ela tem 30 anos): “Nesse mundo não existe coincidência, só o inevitável”.

De costas, Rose arruma o altar erigido no centro. Terços, rosários, rosas, plantas como espadas de São Jorge e arruda fazem companhia a uma estátua de Jesus Cristo, Nossa Senhora e um Buda. No meio, a palavra amor em maiúscula. Ao me ver, ela me cumprimenta com o olhar esverdeado de índia, herdado da avó Guarani e com quem ela aprendeu o ofício. Rose diz ter despertado (“não ensino, desperto”) umas 500 pessoas em seus cursos pelo Brasil. É conhecida onde mora como a “bruxa de Salesópolis” e o adjetivo não a incomoda, pelo contrário: “É um luxo”.

O sincretismo, aliás, é parte integrante deste movimento de renovação das benzedeiras, algo diferente das benzedeiras antigas, habituadas basicamente à fé em Cristo e nos santos católicos. As benzedeiras modernas vêm de outras experiências religiosas como a ayahuasca, umbanda e xamanismo. A religião cristã, embora professada por elas, não é a protagonista no altar espiritual.

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Digo “modernas” porque elas não têm nenhum problema em admitir o uso das redes sociais para agilizar atendimentos, por exemplo – e isso pra mim é moderno. Quem procura Rose pode fazer à moda antiga, batendo à porta, ou pode pedir uma benção à distância por meio do Facebook ou WhatsApp. “Às vezes, no meu altar, tenho 50 ou 60 nomes para rezar”, diz.

Segredo

Uma coisa que não mudou, seja para a benzedeira tradicional e as novas, é o preconceito. Pessoas que procuram Rose por uma reza – seja médico ou pastor – nunca comentam socialmente que foram a uma benzedeira. “Não sou da igreja”, ironiza Rose.

Muito desse preconceito contra a prática vem do Período Colonial no Brasil. Por causa das rezas e benzimentos, elas eram vistas como hereges e feiticeiras num tempo em que era normal demonizar mulher, o saber era restrito a homens e o poder da Igreja Católica era imenso.

São João do Triunfo e Rebouças, no Paraná, são as únicas cidades do país onde moradores podem recorrer as benzedeiras de “carteirinha” sem ter medo dos órgãos oficiais de saúde. Lá, uma lei legitima o papel das benzedeiras e rezadeiras como agentes de saúde pública.

Nas metrópoles, as benzedeiras têm de lidar com o preconceito arraigado e também com o fato de a pouca idade assustar algumas pessoas – não sou só eu que penso na senhorinha quando falamos de benzedeira. É comum quem chega para participar da formação promovida pela bióloga Jacqueline Naylah, em Porto Alegre, se assustar como o fato dela ter 33 anos. “As pessoas esperam sempre uma velhinha benzendo”, diz ela.

Mas, se para alguém se legitimar nessa prática só precisa de uma benzedeira das antigas, ela pode se gabar de ter sido a escolhida. Numa família com mais de 40 netos, a avó, cigana que sempre empunhou o anel do benzimento, escolheu Jacqueline para dar continuidade a seu trabalho. Ela organiza um curso parecido com o de Rose onde, me explica, já “despertou” mais de 600 pessoas, a maioria mulheres.

Hora de benzer!

Na hora de benzer posso escolher alguns dos objetos disponíveis no curso, como um galho de arruda, um ramo de alecrim, uma vela branca (“devem sempre ser quebradas em três após serem utilizadas e jogadas no lixo”) ou utilizar um pouco de cinzas de fogueira (“essas são muito poderosas”). O ritual do benzer, dependendo da pessoa, pode incluir ainda outras ferramentas como banhos, chás, simpatias, imposição das mãos, água benta, além de ferramentas como tesouras, facas, terços, panos ou rosários.

Duplas são formadas e é chegada a hora. Quem está diante de mim é Bárbara. Pego a espada de São Jorge para benzê-la. Uso o ritual ensinado: olhos nos olhos, pergunto se ela deseja alguma presença divina conosco e ela escolhe Krishna. E assim, eu e Krishna benzermos Babi. Ela me confessou ao final do curso perceber que as mulheres saíram dali mais poderosas. “Deu para sentir”. Esse é outro aspecto interessante: algumas daquelas mulheres promovem entre si outras práticas espirituais que buscam uma reconexão com o sagrado feminino – hoje, sem medo de serem taxadas, como antigamente, de bruxas ou feiticeiras.

Encerro minha reza e fico ali no canto, um trainee de benzedor aguardando as demais pessoas encerrarem suas rezas. A partir dali estamos todos e todas “despertas” e aptos para benzer qualquer pessoa que bater à nossa porta, ou no nosso WhatsApp, tudo sem cobrar nada como manda a tradição.

Créditos

Imagem principal: Coletivo Urucum

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