Como voltei a mexer o braço

por Mara Gabrilli

Mara Gabrilli conta sua experiência com cadeira de rodas motorizada: ”agora eu faço meu caminho”

Costumo rir de mim mesma com as soluções malucas que dou ao meu cotidiano para driblar a perda de movimentos.  Passear pelo caos, com a leveza de ir me transmutando a cada compromisso na agenda, sem mexer braços e pernas, consta no meu íntimo como uma grande vitória diária.

Depois de 21 anos que fiquei tetra, meus experimentos nada ortodoxos com meu corpo, principalmente com os braços, mostraram finalmente resultados na minha rotina prática em Brasília. Na semana passada, eu passei a pilotar uma cadeira de rodas motorizada.  Agora, diferente de ter minha cadeira empurrada por uma assistente, eu faço meu caminho.

Essa autonomia, que para muita gente pareceu repentina, é fruto de um trabalho de longa data, com exercícios muito simples, constantes e repetitivos, como, por exemplo, pendurar o braço em tecidos presos ao teto e às paredes de casa. Quando tiramos a gravidade e o atrito, provocamos novos movimentos e resgatamos outros que estão ali disponíveis, porém sem estímulo.

Outra coisa que fez a diferença foi realizar as atividades do dia a dia com minhas próprias mãos. Por exemplo: escovar os dentes, comer, tomar banho. Por mais que eu não tenha movimentos autônomos, o meu cérebro não precisa esquecer-se de como cada coisa é feita. Por isso sempre pedi para que minhas assistentes segurassem a minha mão para agarrar o copo, um talher, a escova de dente... Enfim, por mais que eu precise de alguém para fazer as coisas, a minha participação nas atividades pode ser muito mais ativa que passiva.  Esse hábito faz o cérebro resgatar o movimento daquilo que antes era feito de forma automatizada.

Além disso, tem a eletroestimulação, que sempre foi o meu remédio. Eu passei muito, mas muito tempo, provocando minha musculatura sem perceber nenhuma resposta. Embora muitos profissionais não prescrevam a eletroestimulação, por acreditarem que quando ela não é funcional, ela não tem razão de ser, há teorias muito interessantes sobre o assunto.

Lembro-me de uma pesquisa que ajudei a promover em que cadeirantes foram submetidos à ausência total de contração muscular em todo o corpo. Nesse experimento, detectou-se que alguns aminoácidos, ligados ao sistema imunológico, só eram liberados mediante a contração muscular. Ou seja, a pessoa que não contrai a musculatura tem muito mais probabilidade de desenvolver infecções e ficar doente. Isso derruba a tese de muitos médicos de que a eletroestimulação só tem serventia se for funcional.

Os choques provocam uma contração muscular mesmo que o percurso entre o meu cérebro e músculo ainda não consigam fazer esse caminho sozinhos. Todos esses anos de eletroestimulação conseguiram provocar um esboço de contração no meu bíceps esquerdo, que aos poucos foi se fortalecendo e expandindo para o músculo do meu antebraço. Com essa sequência de movimentos, mesmo sem mexer as mãos, eu consigo movimentar o joystick da cadeira motorizada.

Tudo isso só foi possível porque a eletroestimulação me trouxe muito preparo físico. Preparo de tônus muscular, de circulação sanguínea, de respiração, de conservação de massa óssea, força, resistência e consciência corporal. Melhorando o bombeamento do sangue, consequentemente fortalecemos nossa função cardiorrespiratória. E com mais fôlego, ficamos mais saudáveis e dispostos.

Ah, por fim, tem as minhas pedaladas na velha e eficiente bicicletinha de braço (que também já mostrei aqui para vocês), além dos banhos de banheira, que deixam o corpo solto na água, ajudando o braço a sempre se movimentar.

Ou seja, resgatar esse movimento do meu braço, por mais sútil que ele pareça, envolveu uma série de fatores.  Mas o principal, pois sem ele nada disso seria possível, foi o de acreditar no potencial do meu corpo. Eu nunca aceitei ter uma musculatura atrofiada por estar paralisada.

No fim, as soluções mais eficientes estão em coisas simples, disponíveis em qualquer casa, como parede, prego e elástico. As saídas estão na nossa cabeça. E nela nenhuma paralisia é irreversível, se assim você acreditar.

O próximo passo agora é recrutar movimentos mais refinados, como o dos dedos da mão. Também quero pilotar a cadeira em pé e ganhar mais destreza no braço direito.

Sempre fui uma pessoa de sorrir. Hoje, rio à toa. Pilotar uma cadeira depois de 21 anos é uma alegria muito grande. É como se eu fosse outra pessoa, vivendo numa outra época. É um sonho realizado, imensurável e inimaginável. O que sinto é proporcional a minha história. É algo que passeia por tudo que vivi. E nada, nem ninguém podem me tirar essa sensação de imensa liberdade.

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