Como faz para parar de chorar?

por Milly Lacombe
Tpm #137

Faz dois anos que você me deixou, e faz dois anos que tudo mudou em mim

Faz pouco tempo eu sonhei com você. Foi um sonho bom, como quase sempre acontece quando você aparece, mas eu lembro de ter chorado muito, e lembro de você colocando as mãos em meu rosto e me pedindo para parar de chorar, exatamente como um dia eu pedi que você parasse. Mas como faz para parar de chorar? Eu não sei, eu de verdade não sei. Eu via você no sonho, linda, colorida, mas você também chorava, então fiquei pensando que você talvez também não saiba como faz para parar de chorar. Mas agora já não sei se você pedia para eu parar de chorar porque meu choro deixava você triste, ou se eu interpretei que era isso o que você estava dizendo. Não dá pra saber direito com essas coisas de sonho, sempre tão misteriosas e embaçadas. Mas você estava lá, disso tenho certeza porque a sensação que fica é bastante real. E, sempre que você está num sonho, o que infelizmente não acontece com muita frequência, eu penso que não quero acordar. Mas aí você vai embora e eu acordo e tudo volta ao normal, com exceção da sensação que me acompanha durante um tempo – a sublime sensação de ter encontrado você, e conversado com você, e encostado em você, e rido com você, e chorado com você.

Dia 5 de novembro faz exatamente dois anos que não posso mais fazer isso quando bem entender, e que dependo de sonhos para encontrar você. O mesmo dia no qual você, agora, faria 42 anos: o dia que você nasceu seria o mesmo em que você morreria. Eu sempre achei fascinante pensar que tem gente que morre no mesmo dia que nasce, e lembro de ter lido em algum lugar que isso só acontece com pessoas muito especiais, e pensei que fazia sentido. Nem tudo faz sentido, mas isso fez.

Nesses dois anos muita coisa mudou em mim. Antes de você ir embora, por exemplo, a morte era essa coisa enorme, e temível e irreversível – o mais completo e absoluto fim. Mas depois que você foi embora eu entendi que não é nada disso, que a morte não é feia, nem temível, nem irreversível e muito menos o fim. Sua morte me ensinou tantas coisas, se você soubesse. Antes de mais nada, me ensinou que as pessoas não morrem, e essa já foi uma lição e tanto. Depois, me ensinou que ter medo da morte é uma enorme bobagem. E essa segunda lição me libertou. A lógica disso é que sua morte me libertou, uma lógica absurda, porque sua morte poderia ter perfeitamente me aprisionado, mas ela de fato me libertou. Não ter medo de morrer talvez seja a maior das liberdades, e esse presente você me deixou como herança.

Mas, se antes, para alcançar você, bastava passar o dedo pelo celular e esperar até escutar sua voz dizendo: “Fala, dona Milly”, ocasião em que eu sempre ria, e a gente falava de amores e de dores e do Corinthians – que atualmente, aliás, ia acabar consumindo muitos dos minutos de nossos planos de celular –, hoje para alcançar você preciso de concentração, de sorte, de inspiração. Antes era tão fácil, e agora é esse desafio. Mas a gente vai se virando, aprende a aceitar a dificuldade, a viver com ela, a viver dela. Os grandes amores fazem isso, eu acho. Procuram caminhos alternativos de comunicação e encontram a certeza de que as relações verdadeiras não cabem apenas nos cinco sentidos, e que, quando preciso, se reconhecem nesse lugar de difícil definição.

Então, em busca de você, e da sensação de você, eu medito e, antes de dormir, peço ao divino, ao universo, a quem estiver no comando dessa maluquice toda que me permita, que me autorize e me presenteie com você. Eu nunca aprendi a rezar porque nunca acreditei em coisas que são ditas apenas com a boca, e isso acabou sendo bom porque eu fiz uma oração só para você. Fiz duas, na verdade. Uma para a hora de acordar, sempre a mais difícil, e outra para a hora de dormir.

Olhos abertos no escuro

Pela manhã eu peço que consiga passar pelo dia visitando níveis de consciência que me permitam de alguma forma alcançar você, para que eu consiga ser uma pessoa melhor e assim possa merecer esse acesso. E à noite eu peço para que minha alma se eleve até a sua, para que esse privilégio me seja dado, e para que, assim, eu converse com você, ria com você, dance com você. Eu peço para dançar com você porque eu acho que tem vezes que dançar basta. Antes a gente dançava na sala escutando Nina Simone, hoje já não sei o que dançamos. É tudo novo nesse universo onde nos encontramos, então tem coisas que ainda não consigo escutar, ou perceber. Mas eu aceito. Por sua causa, ou por causa de sua ausência, tive que aprender a aceitar a vida e parar de espernear a cada tropeço. Por sua causa, ou por causa de sua ausência, aprendi a aceitar essa estranha noção de que não estamos respirando, mas sim sendo respirados, e de que essa respiração que o universo nos impõe tem seu próprio ritmo, e que tentar mudar esse ritmo é como tentar mudar a órbita dos planetas, ou interromper o pôr do sol com as mãos, o que talvez só um deus consiga fazer, mas certamente não eu, a mais ordinária de todas as pessoas ordinárias.

Perder o contato diário com você me fez entrar num quarto escuro e entender que de dentro dele a gente só sai quando aprende a ficar com os olhos abertos porque é apenas com os olhos bem abertos que a escuridão perde a cara feia. É apenas com os olhos bem abertos que é possível começar a ver mesmo dentro do mais escuro dos quartos e, assim, começar a perceber o que existe ao redor. Dá medo ficar de olhos abertos na escuridão, mas dá mais medo ficar sem você, então, na escala dos medos, esse deixou de ser grande.

Perder contato diário com você, ser capaz de aceitar sua morte, embora escrever isso ainda não faça muito sentido, me fez acreditar que viver talvez seja mais difícil do que morrer. Viver requer atenção constante, exige que aprendamos a pensar, e a agir muitas vezes contra nossos instintos, e desejos. Morrer talvez seja apenas se deixar levar. Desde que você morreu, viver passou a ser a coisa mais difícil que já fiz. Estranhamente, passou a ser também a mais significativa.

E, embora não possa mais passar a mão no telefone e acessar você, e sua risada, e as besteiras que você dizia e que me faziam rir, posso tentar fechar os olhos e sentir você por perto. Já não sou aquela mulher mimada que precisava de tudo muito claro e explicado e pronto. Hoje entendo que não entendo nada, e aceito ter você dessa forma. Porque o amor, essa coisa doida que nos move, é uma força tão colossal e espetacular e edificante que a morte, essa enorme bobagem, jamais será capaz de estragar.

*A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em casa – que, no momento, é em Nova York. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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