por Maria Ribeiro
Tpm #139

Não sei se compartilho da ideia de que ter filhos nos torna melhores

Não sei se compartilho da ideia de que ter filhos nos torna melhores - mas acredito piamente na evolução da espécie: meus filhos me superarão

Quando você nasceu, eu tive medo de não te amar como amava seu irmão. Como já era mãe havia quase sete anos, temi que a ausência da estreia me tirasse parte do encantamento da maternidade ou da beleza de parir. Porque mesmo as dificuldades do nascimento do meu primeiro filho acabaram revestidas por uma espécie de dever cumprido ou de linha de chegada, como se a própria atmosfera do ar tivesse sido invadida por uma densidade diferente, leve e pesada ao mesmo tempo. Eu sabia que estava perto de Deus, mesmo sem jamais ter sido tocada por qualquer tipo de fé. Eu estava com os dois pés dentro do rio, fazendo parte.

Lembro com exatidão da sensação de sentir minha pele sendo trocada na saída do centro cirúrgico, e de ver pessoas conhecidas como se fosse a primeira vez. Virei outra pessoa em menos de 1 hora, e a consciência dessa mudança tornou esses minutos ainda mais pungentes.

Mas com você foi tudo diferente: seu parto foi rápido, as noites foram tranquilas e meu marido revelou-se um exímio madrugador, fazendo do amanhecer um hábito quase religioso de vocês dois. Era exatamente às 6 da manhã que trocávamos de turno, seu pai e eu. Como operários satisfeitos, sentávamos os três pra tomar café da manhã, esquecidos do mundo e absolutamente presentes, sonhando apenas com o luxo máximo de 5 horas seguidas de sono.

E, assim, ouvindo A tábua de esmeralda, do Jorge Ben, e passeando pelos paralelepípedos da rua Jequitibá, você foi crescendo e existindo, e eu fui percebendo que não só estava completamente apaixonada pelo meu caçula como meu amor pelo meu filho mais velho havia aumentado ao vê-lo transformar-se em um irmão generoso e delicado.

Não sei se compartilho da ideia de que ter filhos nos torna melhores, acho que não. Mas acredito piamente na evolução da espécie. Meus filhos me superarão o quanto antes. Hoje, portanto, quando vejo que você completou 4 anos e já é um garoto sensível e amoroso, penso no que gostaria de deixar pra você.

Talvez o que te caiba.

Porque uma das coisas mais bonitas e difíceis de ser mãe é olhar para os rebentos como outros, e não como extensão de si, e respeitar as diferenças a ponto de amá-las.

Hoje eu me olho no espelho e vejo meu pai e minha mãe, no que deles virou absolutamente meu, e quem sabe será dos meus filhos. Aos 38 anos eu deixei pra trás a violência do pai e o verniz da mãe, características de que, com o tempo, pude prescindir.

Ontem joguei as cinzas do meu pai no mar. Sua morte já não dói. Mergulhamos, seus filhos e netos, felizes e gratos pela experiência da água deixada pelo Capitão Léo.

Mergulhamos e fomos pescar. Olhando pra frente e em silêncio. Sem chorar. Como ele queria.

P.S.: Escrevo esta coluna de uma casa em Angra dos Reis construída pelo Claudio Bernardes, um homem que fazia telhados de palha e quartos em cima do mar. A arquitetura do Claudio foi herdada por seu filho Thiago, que “desleu”o pai pra ficar longe e perto, como deve ser.

Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

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