Círio de Nazaré

por Marcela Paes

Festa religiosa que acontece em Belém une fé, diversão e tolerância à diversidade

São 6 horas da manhã, mas pelo movimento e pela animação das milhares de pessoas na rua, já poderia ser noite. Duas meninas de no máximo 20 anos dão risinhos, tiram fotos e eventualmente mandam beijos ao ouvir a cantora Fafá de Belém e o padre-gato Fábio de Melo cantarem a canção "Círio Outra Vez". Quase ao lado, na mesma aglomeração, um dos bombeiros responsáveis pelo cordão de isolamento da santa, um homem alto e forte, também se emociona e chora copiosamente sem disfarçar a emoção. Um terceiro grupo, composto por um travesti e dois meninos, acompanham a multidão e cantam de olhos fechados, sem errar uma vírgula da letra. Soma-se à cena a temperatura de 34 graus e a imagem descrita resume um pouco da catarse coletiva que se vê nas diversas manifestações que compõem a festividade do Círio de Nazaré, realizada na cidade de Belém, capital do Pará.

A festa, que acontece no segundo domingo de outubro, tem para os paraenses a mesma importância do Natal, e carrega algumas tradições similares. É comum reuniões familiares com fartura na mesa e saudações do tipo: "Feliz Círio". No entanto, apesar das origens religiosas, as semelhanças entre as datas acabam por aí. Manifestações como a festa As Filhas da Chiquita, em que a comunidade GLBT do Pará se reúne em peso para também comemorar a festa da Nossa Senhora de Nazaré, mostram a complexidade de simbolismos e dicotomias da data.

Para o músico Diego Carneiro, a festa tem um lado muito forte para os fiéis, mas agrega todo tipo de gente. "Tem ateu, tem católico, crente, gente que só quer saber de charlar (gíria paraense usada para curtição), gays, heterossexuais... A festa do Círio é de todo mundo", diz.

Mais do que qualquer explicação, a reveladora alcunha de "carnaval devoto", criada pelo escritor paraense Dalcídio Jurandir, dá uma precisa ideia do que acontece nos dias que antecedem o domingo da maior procissão religiosa da América Latina, com aproximadamente 2 milhões de pessoas.

Tradição
Apesar de católica e antiga (o evento é celebrado desde 1793 na cidade), a festa do Círio atrai gente de todas as idades, de idosos a muitos jovens. Com duração de 15 dias e dividida em etapas, que baseiam-se nos caminhos que a imagem de Nossa Senhora de Nazaré faz, a procissão também acaba atraindo diversos tipos de público em diferentes momentos, e tem seu maior número de pessoas no domingo, dia em que a santa sai da berlinda (seu altar) e volta para Basílica de Nazaré.

Na opinião de Julia Rocha, 22 anos, o evento ainda é popular entre os jovens, apesar de assumir que alguns deles vão à festa somente para encontrar os amigos e paquerar. "No sábado à noite, quando ocorre a trasladação, é quando os jovens vão. A trasladação [etapa que acontece a noite] é mais tranquila, não tem tanta gente. Acabamos encontrando todos os nossos amigos, e por isso, já colocaram o apelido de charlação, que significa que as pessoas que vão lá só para curtir, conversar e aproveitar a festa, sem nenhuma intenção religiosa. Mas já tive amigos que vieram para pegar na corda e pagar a promessa que fizeram para passar no vestibular", afirma.

A Corda
Uma das partes mais importantes da procissão é o momento de puxar a corda atada à berlinda com a santa. Todos os presentes querem "pegar na corda", mas a tarefa não é das mais fáceis. Além da dificuldade em se conseguir um pedacinho do cabo para chamar de seu, a caminhada não ajuda. Colados uns aos outros, e esmagados pela "pipoca da corda", os agraciados ainda passam pelo teste do calor. Não é incomum ver gente desmaiar devido a exposição ao Sol e ser retirado pela maca.

Festa da Chiquita
Não é preciso caminhar mais de 500 metros para sair do ambiente da procissão, com velas e imagens da santa, para encontrar travestis em suas melhores roupas, drag queens "super montadas" e pessoas dos mais diversos tipos e estilos. Todas festejam juntas e em paz. Um dos aspectos mais divertidos e diferentes do Círio de Nazaré, a Festa da Chiquita acontece há 33 anos e reúne cerca de 70 mil pessoas na praça da República. Considerada a maior festa do gênero da região Norte, a manifestação não se opõe a festividade religiosa.

Para um de seus idealizadores, o cantor Elói Iglesias, o evento é um complemento, uma parte mais anárquica do Círio. Além da junção de aspectos religiosos e profanos, a Chiquita premia a personalidade gay que mais se destacou no ano. Desta vez, quem levou a honraria Veado de Ouro foi o deputado federal Jean Wyllys, que estava presente na festa.

Divisão do Pará
Neste ano, o Círio também foi marcado pela discussão sobre o plebiscito que decidirá no dia 11 de dezembro se o Pará deve ser dividido em três, originando os estados de Carajás e Tapajós. Mesmo segurando a corda, os paraenses entoavam, entre cantos de louvação, a frase: "Não a divisão, não a divisão". De arrepiar.

Abaixo o documentário Filhas de Chiquita, de Priscilla Brasil.

A Tpm viajou a convite do camarote Bom Dia, Belém, da cantora Fafá de Belém. Agradecimentos: Gabriel Chiarastelli 

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