Um rolê de bike pela história da mulher

por Giulia Garcia

A bicicleta é historicamente um instrumento de emancipação feminina e um projeto de agora foca na liberdade de ir e vir das mulheres negras

De longas e volumosas saias a calças ao direito ao voto. A emancipação feminina, desde a época das sufragistas, teve o interessante auxílio de um instrumento muito cotidiano: a bicicleta.  Durante o século 19, era impossível para uma mulher andar na romântica penny-farthing. O modelo, conhecido dos filmes, tinha roda dianteira maior, aumentando o risco das quedas. O que já era difícil para os homens, pela instabilidade, era ainda pior para as mulheres, por conta de suas roupas volumosas.

O desenvolvimento de um modelo mais moderno, por John Kemp Starley, em 1885, possibilitou alguma mudança nessa situação. As mulheres puderam começar a pedalar e, assim, iniciou-se uma mudança no guarda-roupa feminino — os vestidos desconfortáveis, que restringiam movimentos, começaram a ser substituídos por calças.

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E as roupas nem eram a única dificuldade. As mulheres enfrentavam julgamentos e olhares; andar de bicicleta era uma atitude vista como depravação, acreditavam que o atrito com o assento traria prazer à mulher e, mesmo médicos, condenavam a atividade afirmando que traria danos à saúde feminina. A revolução de costumes resistiu e gerou não só uma mudança de vestuário e aumento da mobilidade, mas também uma consciência de autonomia e unidade que auxiliou na construção do movimento sufragista.

Há um porém: “Quando a gente fala que a emancipação das mulheres veio pela bicicleta, quais mulheres foram essas? As mulheres brancas. As pretas estavam tentando existir", diz a cicloativista baiana Lívia Suarez, uma das fundadoras do projeto Preta, vem de bike.

É A VEZ DAS PRETAS

O projeto idealizado por Lívia conjuntamente com as também baianas Jamile Santana e Maylu Isabel tem origem em uma iniciativa de empreendedorismo criativo, o La Frida Bike Café. A cafeteria itinerante, que agrega poesias e utiliza a bicicleta como sede, levou as meninas a São Paulo, para participar do Bicicultura - esse evento cicloativista mudaria os rumos do projeto baiano.

Os discursos e palestras tratavam da relação entre periferia e mobilidade urbana, mas não havia periferia ali. As únicas negras e periféricas do local eram Jamile e Lívia. Inquietas, elas tiveram uma certeza: era preciso enegrecer os espaços, o empreendedorismo criativo não mais as preenchia, o projeto precisava ter um impacto social.

O público alvo do La Frida eram mulheres negras periféricas e, por isso, elaboraram os recortes sociais. A visibilidade seria dessas pessoas e elas precisavam ter domínio da bicicleta para que a mobilidade urbana deixasse de ser branca e elitizada. O Preta, vem de bike nasceu para ensiná-las a pedalar. As aulas gratuitas, porém, foram muito além de um simples aprendizado. “A gente não está mexendo com mobilidade, a gente está mexendo com sonhos”, explica Lívia.

Os relatos das alunas trouxeram uma nova perspectiva. Assim como a poetisa e fundadora Jamile, a maioria das meninas não teve contato com o esporte na infância. Por vezes, o machismo era motivador em casas ou vizinhanças em que a bicicleta era presente, mas não “coisa de menina”. Em outros casos, como o da poetisa, a questão era financeira, “O sonho de criança era ter uma bicicleta, mas primeiro tem que comer, né?” As feridas de infância eram um ponto comum entre todas as aprendizes e as duas rodas eram muito mais do que transporte, eram cura.

Segundo as fundadoras, o projeto mexe com questões de economia, empoderamento e o olhar racista das cidades. Como transporte, a bicicleta ajuda na locomoção, na autonomia e na diminuição dos gastos com passagens. Como instrumento de emancipação, ela deu voz e conquistou o espaço urbano. Pedalar, para muitas meninas negras, tornou-se um ato político.

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O Preta começou em Salvador, mas já tomou as ruas do interior baiano, São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Fortaleza e Brasília. As aulas de ciclismo são acompanhadas por palestras sobre a invisibilidade da mulher negra na mobilidade urbana e uma pedalada mensal. “É tão surreal na cabeça das pessoas existirem pedaladas de mulheres pretas que, quando a gente vai fazer, não entendem que estamos pedalando por pedalar. Acham que é manifestação”, conta Lívia. Esse é o reflexo das conquista e a ocupação de espaços sistematicamente negados às mulheres negras. Pelo Preta, vem de bike, elas têm um caminho que estimula a emancipação, usando a bicicleta — novamente — como seu principal instrumento de resistência.

Créditos

Imagem principal: Helemozao

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