por Milly Lacombe
Tpm #90

Talvez a felicidade seja mesmo ter alguém que nos distraia e nos faça rir no fim do dia

 

 

Era uma tarde de sexta-feira qualquer e eu estava na Redação quando o telefone tocou. Do outro lado, minha mãe, bastante animada, para avisar que estava indo viajar e não ficaria acessível até domingo ou, quem sabe, segunda. “Como assim? Para onde você vai?” “Não posso dizer”, respondeu. “Não pode dizer?” “Posso, mas não quero.” “Pode mas não quer? Que história é essa? De carro ou de avião?”, tentei. “Não interessa.” “Sozinha?” “Com uma amiga.” “Que amiga?” “Você não conhece.” E assim, enigmática, desligou.

Telefonei para Adriana, sempre a mais lúcida da casa. “Ah, deixa ela”, foi o conselho. Tentei a cumplicidade da outra irmã. “É, ela veio com essa. Deixa pra lá.” Recorri a meu irmão, o “filho perfeito” e confidente. “Não tenho a menor ideia. Mas ela volta”, concluiu rindo. Parecia que apenas eu estava preocupada.

Sábado de manhã resolvi testar o celular dela na esperança de que tudo não passasse de um blefe. Nada. Tentei dezenas de vezes ao longo do dia sem nenhum sucesso. O que faria uma viúva de 72 anos e sete netos sumir voluntariamente? Finalmente, por volta da meia-noite de sábado, no que devia ser minha 40ª tentativa, ela atendeu.

“Ficou maluca? E se acontece alguma coisa? Eu tenho que saber onde e com quem você está. É o mínimo!”, nem eu sabia que estava tão brava. E que estava prestes a ficar ainda mais brava quando a ouvisse rir do outro lado.

“Ah, me deixa, Milly”, respondeu ela, que só usa meu apelido quando o interesse é parecer mais amiga do que mãe. Nessa hora, ao fundo, pude ouvir outras vozes, ou outra voz, não ficou claro, rindo muito.

“Mãe, você está usando drogas?”, a pergunta era literal. “Pelo menos diz que foi bebida”, continuei.

Do lado de lá, muitos outros risos.

“Drogas mais fortes”, disse ela. E agora os risos eram histéricos. Eu não sabia onde ou com quem ela estava, mas ela parecia estar se divertindo como uma adolescente.

“Maria Emilia (é assim que ela me chama quando quer me lembrar que a maior patente na família ainda é a dela), me deixa. Eu estou bem. Segunda-feira tô de volta. E não me liga mais.”

Agora ela estava séria e eu me encolhi. Mas não por muito tempo porque, depois de segundos, ela e a pessoa ao lado dela voltaram a rir histericamente. Gargalhando, ela desligou.

Amor de juventude
Desde que meu pai morreu, há nove anos, minha mãe assumiu o papel da avó. Como os netos não parassem de chegar, e ela não parasse de ser solicitada, entrou nessa de cabeça. O talento dela na função é inquestionável, e o rebanho tem pela Nonna verdadeira adoração; é só para ela que minhas irmãs confiam a prole. Assim, sobrou pouco tempo, e quase nenhum interesse, para que a matriarca fizesse qualquer outra coisa da vida na ausência de meu pai. Ou parecia ter sobrado.

Na semana seguinte ao ocorrido, eu, ainda intrigada, fui em busca de uma explicação e encontrei, no meio de tantas possíveis – e na minha lista de possíveis havia inclusive sequestro e demência temporária –, a mais bizarra. “Sua mãe está namorando”, me disse a fonte. “Um ex-namorado e grande amor da juventude.” Não sei quanto tempo demorei para conseguir falar outra vez, e certamente só consegui porque minha mulher, achando tudo aquilo sensacional, me reanimou.

Como aprendi muito cedo na vida a não fazer perguntas que me conduzam a respostas que não quero ouvir, decidi não tocar mais no assunto. Saber que sua mãe de 72 anos está apaixonada é como ser demitido do emprego que você odeia: ao mesmo tempo animador e perturbador.

Minha mãe ainda mora no apartamento onde morávamos quando éramos seis. Semana passada, ao sair do elevador, vi, como vejo sempre que chego lá, o apartamento todo escuro, iluminado apenas pela luz da TV que vem do quarto dela. Hoje, é ali que ela fica a maior parte do tempo. Uma enorme mudança para quem, antigamente, frequentava de forma absoluta a área completa do lugar que, em geral, funcionava com as luzes todas acesas. Era ela que fazia o jantar, chamava a tropa para sentar, servia um por um à mesa, mandava que escovássemos os dentes, acordava a prole em horários variados, mas sempre antes das sete da manhã, para a escola, mantinha a casa em perfeita ordem para que todos nós, incluindo meu pai, pudéssemos sair pela vida em busca de nossos sonhos – embora ela tenha se afastado por mais de quatro anos de mim quando descobriu que meu sonho era ser quem eu sempre fui e que isso passava por me assumir gay. Não pode ser fácil, ainda que a mudança do cenário faça parte dessa jornada, viver solitária e silenciosamente num apartamento que já foi tão agitado por brigas, paixões, jantares alegres, jantares tristes, encontros e revelações.

Quando vale a pena
Há alguns dias, sentada no sofá da sala do apartamento que um dia também foi meu e tomando uma taça de vinho depois do jantar, perguntei se ela preferiria que meu pai estivesse vivo. Como ser politicamente correta nunca foi o forte dela, sabia que a resposta seria sincera e me preparei para o pior, que seria, por exemplo, ela me dizer que o tal namorado da juventude foi o grande amor da vida dela. Pior porque, naturalmente, colocaria meu pai em posição delicada, faria de mim e de meus irmãos pequenos deslizes da natureza e transformaria minha mãe em uma versão bizarra de Meryl Strip em As Pontes de Madison – igual, mas sem as 15 indicações para o Oscar.

“Era melhor com ele aqui”, disse ela com muita calma, para alívio da pequenez de minha alma. Insisti: “Você parece tão bem hoje e vocês brigavam tanto.”. “Ah, mas ele me fazia rir. Mesmo quando ele estava lendo, escrevendo ou ouvindo música, no mundo dele, ele sempre dava um jeito de debochar de alguma coisa para me fazer rir.”

Sem ter o que dizer, dei mais um gole no vinho. Talvez a felicidade seja mesmo, no fim do dia, ter alguém que nos distraia e que nos faça rir – e é provável que minha mãe, apesar das brigas, tenha sido, por muitos anos, uma mulher feliz . E é também provável que hoje, depois de tanta dor, ela tenha conseguido entender que eu, ao chegar em casa todas as noites e encontrar a mulher que me ama, que me faz rir e que, há mais de três anos, me distrai, seja feliz.

E talvez, apenas talvez, minha mãe tenha, aos 72 anos, voltado o filme de sua vida para terminar uma história de amor que começou há mais de 50. Um tipo de coragem que, convenhamos, não se vende a baciadas pelas esquinas do cotidiano. E disposição que, sublimando o estranho detalhe de estarmos falando sobre minha mãe, não deixa de ser tremendamente animadora.

*A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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