por Antonia Pellegrino
Tpm #166

Sobre o dia em que deixamos de ser canalhas e olhamos para o lado, para o outro

Na minha foto de perfil, a frase: “Colocar-se no lugar do outro faz do mundo um lugar de todos”. A escrita como exercício diário de construção de um lugar de empatia. A forma possível de escapar da tragédia atávica da elite brasileira: viver sem olhar para os lados. Viver à sombra de regalias herdadas. Chegar a algum lugar por privilégio e algum esforço próprio, e pensar somente em si e nos seus. Dormir tranquilamente enquanto a polícia desce bala na favela. Noticiar o susto dos estudantes da faculdade de elite com o tiroteio na favela, mas não a dor da própria favela. Porque não importa a dor da favela. As grades dos prédios nos protegem dela. Viver sem olhar para os lados, somente para a frente. É isso que aprendemos.

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Passamos a vida confortáveis no papel de canalhas que a sociedade brasileira nos oferece. Somos canalhas porque aceitamos, sem moralmente nos indignarmos, o fato de milhares de brasileiros não terem educação. Passarem pela vida embrutecidos, desprovidos da capacidade de saberem-se sujeitos, dignos de direitos. Somos canalhas porque somos incapazes de sentir empatia.

Mas às vezes os brutos protagonizam fatos brutais, e nos pegam pelo pé. Pelo choque. E acabamos sendo levados, à revelia de nós mesmos, a um lugar empático. Como aconteceu com o estupro coletivo da jovem de 16 anos carioca. No dia em que a notícia ganhou a grande mídia (ela já circulava havia dois dias pelas redes sociais e redes feministas), recebi mensagens de amigos se dizendo abalados. A violência extrema do caso, e a condução tão violenta quanto, chocou boa parte do país.

A violência do episódio fez com que, por alguns instantes, tenhamos deixado de ser canalhas. Tenhamos nos colocado no lugar da jovem, estuprada por 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33 paus. Tenhamos pensado nos caras que receberam o vídeo e sorriram, tornando-se, sem nem se dar conta, cúmplices. Até que alguém tenha percebido que tinha alguma coisa errada naquilo. Algo de inaceitável. E disruptivo. Capaz de nos desprogramar. Capaz de reunir mulheres em fúria nas ruas e redes. Pra gritar que NÃO! Que CHEGA!

E uma das muitas razões que faz com que este episódio tenha acontecido, que faz com que a cada 11 minutos uma pessoa seja estuprada, todos os dias, é o fato de vivermos sem olhar para os lados, é a nossa falta atávica de empatia. Sem empatia, é impossível amar alguém, além de si mesmo. O estupro da jovem de 16 anos é de uma falta de amor dilacerante. Mas o estupro dessa outra centena por dia me dilacera tanto quanto.

Enquanto continuarmos agindo como canalhas, permitindo que os outros sejam tratados como coisas, sem nos tocarmos que estes outros são tão humanos quanto nós, continuaremos a conviver com fatos brutais. É preciso encarar a canalhice em cada um de nós. Pra mudarmos. Porque a brutalidade é antípoda da empatia. E só existe amor com empatia. Colocar-se no lugar do outro faz do mundo um lugar de todos. A partir de agora, como um mantra.

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