Sem mágoas ou amor, por Antonia Pellegrino

por Antonia Pellegrino
Tpm #170

”É preciso tirar forças das profundezas da terra para então se perdoar e atingir um estado neutro”

Para se separar é preciso tanto desejo como para se constituir enquanto casal. É preciso a mesma determinação. O mesmo empenho, atenção, cuidado e desejo. Mas se no começo essa determinação é ativada por afetos alegres, numa separação o que conduz são os afetos tristes. É preciso tirar as forças das profundezas da terra, para onde o resultado do que for produzido por estas forças estará destinado. E por isso a narrativa é tão importante.

Ela é como um rezo, uma história que cada um costura para si, em silêncio, mas que, ao invés de entregar aos céus, é entregue à terra. Essa história íntima só pode ser liberadora se houver nela generosidade com as nossas falhas.

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Não posso falar por você, mas apostaria que, se você pudesse ter feito de outro modo, você teria. Mas você não pode. Dá muita raiva, né? Porque havia vidas e belezas em jogo. Mas você não pode e não há como lutar contra isso. É preciso aceitar. Se eu pudesse fazer de outro modo, não teria medido esforços. Mas eu não pude. Não há porque ter culpa – embora seja necessária à arqueologia da tragédia. Não há por que ter culpa. Nós não pudemos, simplesmente. Acabamos ambos derrotados, perdendo para nossas falhas.

Acredito que ninguém queira se se-parar. Mas separações acontecem. A todo dia, a toda hora. Porque há em todo casal aquilo que eles não conseguem realizar, e em algum momento este irrealizado desobstrui o caminho e vence. Vencem as falhas. A sua frase sobre o direito de se separar, embora justa, soa antipática por ser uma consciência fálica disso, enquanto talvez o mais desestabilizador, e necessário, seja a consciência da falha. Ela é mais generosa. Mais liberadora. E o norte da liberação não viabiliza apenas uma relação futura entre nós – este norte viabiliza a própria separação.

Recomeço

Só a liberação permite a separação, nos níveis mais sutis. Por isso demora – embora os corpos tenham se separado, nem tudo é corpo. É preciso que as várias consciências se orquestrem para elaborar, aceitar, transmutar a perda e, finalmente, deixar ir uma separação.

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A única forma de se separar é essa: quando os dois se liberam, se perdoam e conseguem finalmente chegar a um estado neutro. De sentimentos apaziguados. De nenhuma expectativa. Sem mágoas ou amor. Apenas uma pequena clareira, de terra fofa e fértil. Porque, como diz Paulo Mendes Campos: o amor acaba “na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba”.

Créditos

Imagem principal: Brunna Mancuso

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