por Camila Eiroa

A cantora recebeu a Tpm e falou, sem rodeios, sobre sua vida, as parcerias e a importância da nova fase

“A Ana é azeda, mas é doce quando é doce”, cantava em seu primeiro álbum. Mas Ana Cañas não é nem doce, nem azeda. Talvez agridoce. Esbanja a sensibilidade de quem acredita no amor, e tem à flor da pele toda a verdade de ser uma mulher felina. A cantora paulistana de 33 anos só descobriu sua arte aos vinte e poucos, cursando artes cênicas na faculdade. Na audição de um musical, conheceu a música de Ella Fitzgerald e então percebeu que aquele era o caminho que deveria seguir. Foi quando começou a cantar na noite e engatinhou para a gravação de seu primeiro CD – Amor e Caos -, lançado em 2007 e que hoje tem três sucessores.

Em sete anos de carreira, já se encontrou com grandes e importantíssimos nomes da música brasileira. Já foi produzida por Arnaldo Antunes no seu disco Hein? (2009) e hoje tem Ney Matogrosso ao seu lado no Coração Inevitável - CD e DVD recém-lançados. Já cantou e compôs ao lado de Nando Reis e também já teve música em novela global. Aparece nua no videoclipe de Volta, canção de mesmo nome do disco lançado em 2012. Mas passou por situações delicadas que a fizeram se afastar de sua carreira.

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Em uma tarde de sol, ela recebeu a Tpm em sua casa e contou, sem rodeios, sobre sua vida. Falou também da recente polêmica envolvendo uma declaração sobre o corpo feminino e a importância da nova fase tanto pessoal quanto profissional.

Quem é a Ana Cañas hoje, com quatro discos lançados e um DVD? Eu vejo processos de vida pessoal sendo refletidos musicalmente. Isso você pode considerar de diversas maneiras. Pode considerar como burrice, no sentido de que tem artistas que conseguem ter uma separação da vida pessoal e da vida profissional. No meu caso, não foi esse o caminho que eu escolhi. Eu sempre escolhi jogar muito aberto, falar sobre tudo e correndo todos os riscos – inclusive de ser mal interpretada. Por todas as crenças que eu tenho na vida e o que eu levo pra mim, eu não vejo porque ficar fazendo um personagem, ou então dizer que eu nunca vou fazer algo e depois fazer, sabe? Eu acho que todo mundo já sabe muito dessa história do meu pai, que faleceu de alcoolismo e eu vivi uma adolescência tardia – nunca tinha usado nada, nem experimentado nenhum tipo de droga. Então eu acabei fazendo isso mais tarde e mais velha, o que acabou refletindo no meu trabalho. Dos erros que eu tive da minha história, e que eu nem acredito que sejam erros, mas sim tropeções, hoje eu me sinto mais equilibrada e resolvida, com certas questões equacionadas em relação principalmente ao uso de bebida. Me sinto mais amadurecida. Passei por  um casamento de 9 anos, me separei. Você conhece alguém que vive uma vida  monótona sempre? Os últimos dez anos da sua vida foram iguais? Às vezes sinto um pouco essa cobrança, de que eu deveria fazer sempre as mesmas coisas, tocar sempre as mesmas músicas e eu acho isso chato, careta... Sempre que as pessoas me perguntam essas coisas eu sinto que estou tentando chegar na resposta enquanto respondo. Eu sou uma mulher, uma pessoa, um ser humano, que vivo de música, tento cantar, tento comunicar com as pessoas.  

Nesse trabalho, a impressão é que você está mais segura no palco. Todo esse processo te fez mais confiante hoje? Me sinto superconfiante no trabalho que eu estou fazendo. Acho que tem muito a ver com a direção do Ney Matogrosso, isso me deu um outro lugar psicológico com a minha relação com o palco. Eu resolvi me arriscar muito nesse show. Tem muitos momentos de sensualidade que eu nunca tinha aflorado e que foi um caminho novo pra mim. Eu não sabia que eu tinha isso, só sabia que queria explorar dentro do show porque eu sempre achei bonito nos artistas que eu admiro. A Gal [Costa], o próprio Ney, a Rita Lee... Artistas que sempre permearam a questão sexual e passaram nas questões musicais. Tudo começou quando eu resolvi fazer um clipe com o Trippoli, que me propôs que eu ficasse nua e eu aceitei. A gente filmou em 2010 e foi a partir desse vídeo que eu fui procurar o Ney, que viu e entendeu o que eu queria fazer no show. 

Foi o clipe de Volta? Sim.

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E essa relação com o Ney vem desde o Som Brasil em homenagem ao Cazuza? Isso, foi quando a gente se conheceu. Eu sempre tive uma admiração enorme pela metamorfose ambulante que ele é. Eu fazia um show muito improvisado, sempre mudava a ordem do repertório, falava demais - isso as vezes tinha a ver com o fato de eu ter bebido ou não. Sou uma pessoa muito questionadora, muito reflexiva. O Ney me ajudou a entender que o momento do palco é muito o momento da música, da canção, e que você diz muito através disso. Coisas que me faltavam perceber sozinha. Às vezes a gente fica na adrenalina do show, na carga emocional de querer ser aceita pelo público, que é uma coisa que a gente sente e que não dá pra fugir como artista. Ele me deixou mais segura porque claro, é o Ney Matogrosso, é a assinatura dele embaixo do que eu estou fazendo, mas principalmente por saber que ele, ser humano, me estendeu a mão num momento da minha vida que quase ninguém ficou do meu lado. Porque quando você cai, as pessoas se afastam. Quando eu o procurei, eu disse que precisava me resgatar, saber quem eu era e não me definir. Reencontrar um caminho possível. Naquele momento eu realmente não sabia mais o que estava acontecendo. Eu vou ser grata ao Ney pelo resto da minha vida.

"'E aí, você vai pegar esse talento que você tem e trocar por um porre?', foi quando o Ney me disse isso que eu resolvi pensar sobre, e parei"

Você chegou a ter um quadro de alcoolismo? Eu não sou alcoólatra. Alcoolismo é uma doença, é um quadro gravíssimo de dependência. Eu era uma menina que estava levando tudo com uma certa frivolidade, bebendo quando não tinha que beber. Isso tem que ser esclarecido de uma vez. As pessoas me viam e falavam que eu estava me autosabotando, o que é bem provável que eu tivesse mesmo fazendo, porque eu só bebia antes dos shows. Eu não era uma pessoa que ficava bebendo o dia inteiro. Nunca vivi isso, nunca cheguei ao ponto disso. Fui muito infantil, imatura. Super inconsequente. Foi uma escolha minha de fazer um show e estar triste e resolver beber antes de subir no palco. Foi difícil até pelo fato de eu ser uma pessoa que, até então, nunca tinha colocado uma gota de álcool na boca. O que era extremamente diferente; uma menina de 26 anos nunca ter bebido. Esse foi o problema, na verdade. Como eu tinha pai alcoólatra, eu não bebia. Ele faleceu, eu resolvi querer entender o que era e saber como ele se sentia. Se você for ver, tem um histórico até que bem racional de acontecimentos. Previsível, até. "E aí, você vai pegar esse talento que você tem e trocar por um porre?", foi quando o Ney me disse isso que eu resolvi pensar sobre, e parei.   

Essa crise de identidade veio por causa do falecimento do seu pai? Eu acho que sim, foi um pouco de tudo. Mas principalmente porque foi uma perda dolorosa. Todo o ser humano tem o livre arbítrio pra fazer o que quiser, e inclusive caminhar pra uma espécie de morte, que seja. É difícil eu, no papel de filha, entender/aceitar isso. O alcoolismo é um assunto muito tabu ainda. Se você pega como a bebida é comercializada, a forma como é facilitado o consumo da bebida... E eu acho louco que é mais prejudicial do que a maconha, sabe? Em diversos sentidos. E você encontra álcool em todo lugar, as pessoas que estão com esse tipo de problema têm o vício psicologicamente e socialmente estimulado. Se você não bebe, você é estranho. Parece que é uma pessoa que tem algum problema. É uma doença seríssima a ser tratada e eu sinto que no Brasil nem se discute isso.  A gente está começando a discutir a maconha, mas também é muito devagar.

O álcool tinha alguma relação com insegurança em subir no palco nessa fase? Eu sempre fui muito segura cantando. Eu cantei em bares, então nesse tipo de clima, você tem que entrar pra ganhar. Eu me lembro de entrar no bar e as pessoas estarem conversando, comendo, bebendo. A última coisa que elas estão ali é pra te ver cantar, eu queria que elas me percebessem. O que eu estava passando era tristeza, o que fez com que eu largasse mão. A minha crise se deu num momento da minha carreira que eu tava muito exposta. O perder-se, pra mim, foi importante pra que hoje eu soubesse o que eu quero comunicar. Estou vivendo um momento de plenitude e maturidade artística que eu nunca vivi.  

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E sobre a polêmica da sua declaração na Veja? Eu não esperava a reação de machismo. Logo eu, que sou uma mulher completamente independente, estudei o que foi a luta da causa feminista por direitos e leis, tenho conhecimento de tudo... O que eu quis dizer foi no sentido da banalização e da vulgarização que eu realmente acho que acontece com o corpo feminino. Começando pelas capas de revistas de todas as bancas, existe um protótipo do que deve ser a mulher ideal - o que eu acho um fracasso total e absoluto. Não vejo em capas de revistas mulheres pensadoras, questionadoras. Como eu, uma pessoa que está quase seminua no palco, pode dizer que a nudez seja errada? Eu sou a favor de que as mulheres sejam o que elas quiserem ser. Inclusive se elas quiserem sair peladas na rua, que saiam. Sou a favor da felicidade. O que eu questiono é o contexto da nudez. Eu acho que tem muito deslocamento de ideia entre o feminismo e o machismo. Do tipo de que se um homem abrir a porta do carro é ofensivo pra mulher. Eu acho que um dia ele pode abrir, outro dia eu posso abrir. Eu não fico ofendida. Considero uma gentileza, o que não significa que ele tenha que fazer isso toda vez e que eu não possa abrir a porta do carro pra ele. Acho que existe muito radicalismo nas posições, muita confusão e imposição de que você deve ou não fazer. Eu sou romântica, se o cara me traz flores eu gosto. Gosto de que um homem seja gentil comigo, ou que uma mulher seja gentil comigo. A frase foi tirada de contexto. Acho a nudez a coisa mais linda do mundo. Eu acho que a gente é mais do que a banalização de nós mesmas. Mas até que ponto nós, mulheres, não contribuímos, não compramos essas revistas todo o mês? 

"Como eu, uma pessoa que está quase seminua no palco, pode dizer que a nudez seja errada? Eu sou a favor de que as mulheres sejam o que elas quiserem ser. Inclusive se elas quiserem sair peladas na rua, que saiam."

O que a figura da mulher representa pra você? A gente mexe com forças muito grandes. A gente mesmo leva tempo pra entender. Eu me sinto engatinhando até a mulher que posso me tornar. Sexualmente, enfim, me descobrindo. Eu acho que a mulher é o ser mais foda que existe, ela é misteriosa, forte... O culto das deusas, das Bacantes. Acho sim que a gente foi extremamente reprimida porque temos essa força, temos a poesia, carregamos a beleza, carregamos a força de gerar vidas. Meu show é uma ode à liberdade feminina. É muito ruim ser mal interpretada ainda mais em um assunto desse.

E você acha que as questões que a gente comentou, tanto do machismo e até mesmo da maconha, tendem a ser mais discutidas? A real é que eu acho que vamos viver uma superficialidade eterna. Você tem uma tragédia anunciada num país sem educação e sem cultura. Se você não educa as pessoas, se elas não conseguem ter acesso à informação, como você vai poder discutir esse assunto? É um país em que resolveram acabar com o salário do professor, acabar com matérias fundamentais como filosofia e educação artísticas, matérias que te trazem a consciência do que é pensar, do pensamento metafísico, questionador... Eu gostaria de ter uma esperança e acho que temos aumentado as discussões. Mas acho que graças ao jornalismo independente, à internet, à atitudes esporádicas de um ex-presidente que faz documentário, você consegue esse questionamento. Só que sinto que a gente ainda está muito longe de uma discussão séria desses assuntos e o momento já passou. O que seria uma democracia que não isso? Sinto que não existe debate, existe polêmica. Eu sempre achei que a questão das drogas não é o quanto e o como, mas o porquê. E esse eu acho o verdadeiro ponto de se discutir o uso de drogas no Brasil. É uma questão de saúde pública, não de segurança. Te falo de vivência, de usar hospital público e de saber que a gente ainda está há milhões de anos de ter uma discussão merecedora e de uma seriedade competente sobre esses assuntos delicados que matam pessoas todos os anos.

Assim como o aborto. Sim, o aborto. Que é uma questão supercomplexa, porque envolve a questão de mulheres fazendo o que fazem no desespero de tirar uma criança... Até quando elas não vão poder ter um auxílio em um momento de desespero? Tudo gravita em torno da questão da educação e cultura.

Bom, e sua relação com o Arnaldo Antunes? A gente é superamigo, preciso sentar e fazer mais músicas com ele. Que que eu posso te dizer do Arnaldo Antunes? Ele é um gênio. Foi além do além. Sempre que eu o via no Titãs eu enxergava uma figura meio punk, tipo Iggy Pop mesmo, só faltavam os alfinetes. Da maior dignidade, assim como o Ney. O cara esteve presente em momentos difíceis também, eu ficaria elogiando o Arnaldo até de noite. Como você pensa o impensável? Por isso ele é o Arnaldo Antunes. O Nando também. Não tem justificativa. É muito incrível uma mente humana que consegue pensar e criar algo que vai emocionar todo mundo. Assim como a Marina. São pessoas que eu tenho a sorte na minha vida de serem meus amigos. São de outra geração e têm o olhar atento pra quem está vindo, no sentido de ter a troca, a conversa, o estímulo. Eu aprendo muito com eles. 

Marina Lima? Sim. Outro dia ela estava aqui me puxando a orelha porque eu estava com mania de musicar meus poemas. E ela dizia que canção não é musicar poema, é pensar na melodia. E amigo é isso, quem puxa minha orelha na hora que tem que puxar. Que nem o Ney com o lance da bebida. 

As divas do jazz têm uma parte fundamental na sua descoberta como cantora? Como mulher. A mulher, suas dores e sua música. Da onde se extrai aquela alma, aquela voz, aquela emoção cantando? Da onde a Elis tira aquilo? Da vida, das dores, amores, desamores, loucuras. Loucuras dos outros. Eu acho que a cantora que vomita, que põe a boceta, já nasceu vocacionada. Isso não se aprende. Eu realmente acredito que música seja alma, seja expor sua fragilidade. Cazuza já dizia “somos iguais em desgraça”. 

Compor, pra você, é um processo ritualístico? As últimas que eu compus foram um processo meio mediúnico [risos]. Eu sentei e fiz a música, pensei na melodia e me veio a letra na sequência. Uma coisa que eu tinha muita dificuldade de fazer por causa da minha ligação com a poesia. Não sei de onde vem. Gosto muito de compor junto com as pessoas também. Escrevi uma com o Dadi Carvalho chamada “Feita de fim” que seria uma ótima resposta pra polêmica da frase, inclusive.

A música para o seu pai, "Te ver feliz", você escreveu na época do falecimento ou depois? Eu compus na época, em 2009 ou 2010. Chegamos a gravar no Volta, mas no final resolvi não expor. Com o DVD achei que eu queria falar sobre isso, falar sobre o passado e o alcoolismo.

E o próximo trabalho, já tem alguma ideia? Já estou pensando nele. Talvez eu o lance no final desse ano ou no começo do próximo, mas acredito que o DVD ainda vai ficar aí por um tempo... Já estou compondo, vendo possíveis parcerias e produções. Tenho vontade do Nando Reis um dia produzir um disco meu, pode ser que seja o próximo. A gente tem muita afinidade, inclusive nas loucuras.

 

Créditos

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