A primeira DJ do Brasil

por Ariane Abdallah
Tpm #96

Quando agitar festa era trabalho de homem, Sonia Abreu invadiu a noite paulistana de saia

Era dia de festa. A mãe de Sonia havia parado de respirar havia poucas horas – morte cerebral. Mas Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, esperava a DJ com a casa cheia. Sonia colocou aquela senhora num caixão, na sala de casa, no Jardim Paulistano, bairro nobre de São Paulo. Cuidaria do assunto na volta do trabalho. Naquele momento, apenas entrou no carro com 5 mil de seus 20 mil CDs e fez a high society paulistana dançar até funk carioca noite adentro.

Sonia Maria Saraiva Santos Abreu, a SoniÁbrêu (ela assina assim por causa da numerologia), é especialista em fazer qualquer um saracotear ao som de música africana, sertaneja ou árabe até hoje – mais de 40 anos depois de popularizar músicas gringas até então inéditas no Brasil e se tornar a primeira DJ mulher do país. Aos 60 anos, ela curte “o pé no chão” que veio com a menopausa. Mas estreia o programa Ondas Tropicais no UOL este mês e paga as contas tocando em festas de Marta Suplicy, do publicitário Nizan Guanaes ou do filho da empresária Sonia Diniz.

A DJ recebe a reportagem da Tpm de batom vermelho e sombra rosa. Acaba de chegar do Guarujá (SP), onde foi pegar onda de morey boogie, esporte que pratica há dez anos. Seis meses depois da morte da mãe, Sonia mora sozinha na mesma casa. Seu estúdio é na edícula. Lá, ela baixa músicas no computador para abastecer o repertório, que inclui forró e Ivete Sangalo, os ídolos Rolling Stones, Frank Zappa, Zeca Baleiro, Carl Cox e Beatles e nomes de que gosta na cena atual, como Pitty e a banda Pedra. Há 11 anos, ela vendeu e doou seus 22 mil LPs. “Pra que guardar velharia?”, pergunta.

De antiga, basta sua certidão de nascimento. Por causa dela, Sonia tem que se apresentar a profissionais mais jovens, que perguntam: “Você?! DJ!?!”. “Ninguém imagina uma DJ velha”, pondera a própria. “Pela experiência, ela tem coragem, por exemplo, de colocar música indiana num repertório house”, observa o DJ Paulo Recicle, 30, que faz assistência para a veterana.

Mas por pouco Sonia não arrasa em rede nacional. “Era para eu estar no Big Brother”, garante. Segundo ela, no dia da entrevista para entrar no programa, o diretor do reality show, Boninho, mudou de ideia ao ver que o cabelo da DJ estava branco, e não mais vermelho, como era sua marca registrada. “Ela estava entre as 300 entrevistadas e não foi escolhida, mas não por sua aparência. A observação sobre a mudança do cabelo foi só brincadeira!”, esclarece Boninho.

Profissional desde os 18 anos, Sonia começou como programadora da rádio Excelsior, onde ficou até os 28. “Eu que trouxe a world music para o Brasil”, garante. Ficou outros dez anos na rádio Brasil 2000, quatro na 89 FM e passou pela USP FM. Ela também esteve no Festival de Águas Claras – espécie de Woodstock brasileiro, em Iacanga (SP), em 1979 (leia reportagem na Tpm #91) – e criou a Ondas Tropicais, uma rádio ambulante estilo sound system jamaicano.

Sonia atribui essa ideia a um encontro com extraterrestres, que conta ter acontecido numa praça paulistana, nos anos 80. A bordo de sua Brasília, ela avistou um objeto grande, cinza. Desceu do carro e, em poucos instantes, apagou. “Mas ouvi vozes me dizerem que eu tinha que tocar para a massa. Falaram até as medidas que deveria ter a mesa de som”, conta.

O projeto, que durou oito anos, começou com uma Kombi, passou para um trio elétrico, rodou São Paulo e terminou num barco navegando pelos litorais paulista e fluminense. Além disso, Sonia fundou, em 1990, uma banda com 22 artistas, entre eles bailarinas africanas, percussionistas, trompetista e cantores líricos. O grupo abriu shows de Jimmy Cliff, YellowMan e Margareth Menezes.

O amigo, jornalista e DJ Otávio Rodrigues dividiu com ela um programa na rádio 89, nos anos 80. “Sonia estuda antes de fazer uma festa”, resume ele. Foi por isso que a produtora de TV e cinema Suzana Villas Boas a contratou para tocar, em 1990, no seu casamento com Arnaldo Jabor, hoje ex-marido. “Ela fez uma seleção inteligente, que transitava por todas as faixas etárias”, lembra Suzana, que repetiu a dose numa festa do programa Saia Justa, do GNT. “A Rita [Lee] não vai a lugar nenhum, mas foi nessa festa e dançou até o sol nascer”, lembra a anfitriã.

“A Rita Lee não vai a lugar nenhum, mas foi nessa festa, em que a Sonia tocou, e dançou até o sol nascer” Suzana Villas Boas, produtora de cinema e TV

Longe das pistas, a biografia de Sonia tem capítulos pouco conhecidos. Por exemplo, o fato de ela ter tomado a frente na recuperação do amigo e cantor Arnaldo Baptista, quando ele se jogou do quarto andar da clínica psiquiátrica do hospital do Servidor Público, em 1982. Ela morava com Lucinha, fã de Arnaldo na época, que virou esposa depois. Filha e sobrinha de médico e experiente na arte de falar, Sonia chantageou os médicos para conseguir livre acesso à UTI. “O quarto de onde o Arnaldo se jogou não tinha grade, e toda a imprensa estava fotografando isso. Eu prometi que não deixaria ser publicado desde que ele tivesse um quarto particular e nós pudéssemos montar nosso plantão”, lembra ela.

O plano deu certo e Sonia, Lucinha e mais cinco amigas se revezaram durante os três meses em que Arnaldo ficou em coma. Do acidente, ele ficou com a sequela de uma lesão cerebral, mas voltou a compor e a se apresentar com Os Mutantes.

Música para dançar pelada
Há 40 anos vegetariana, e há 20 macrobiótica, Sonia salta da cama às cinco da manhã, corre 6 quilômetros, faz musculação, pratica ioga, anda de bike e almoça sempre no restaurante Revitalizante, no Paraíso, frequentado por Gilberto Gil, “um dos meus ídolos”. Mas seu ídolo número 1 é Jesus Cristo, cuja imagem divide as paredes do estúdio de Sonia com deuses hindus e fotos da DJ de cabelo comprido e cara de menina. Apesar da passagem do tempo, ela tem pique para passar noites sem dormir e se orgulha do corpo. “Eu posaria nua sem retoque!”, brinca.

Para Sonia, corpo nunca foi tabu. Já dançou muito pelada na frente do espelho, e só parou quando, aos 41 anos, voltou para a casa da mãe. Dona Aduzinda sofria de mal de Alzheimer e passou 18 anos entubada sob os cuidados da única filha. “Virei mãe da minha mãe”, diz Sonia, que nunca engravidou.

Ela, que já foi simpatizante das ideias de liberdade sexual pregadas pelo indiano Osho Rajneesh, casou na igreja católica, em 1972, com um percussionista da Banda da Ilusão, de Ronnie Von. O apresentador foi padrinho da cerimônia e Silvio Santos, na época colega de Excelsior, deu ao casal um jogo de copos azuis. Mas o plano de formar uma família durou dois anos e, de lá para cá, Sonia teve apenas dois namorados. “Não quero sexo por sexo”, declara.

Por causa do espiritismo, Sonia parou de fumar maconha há um ano. Em bebida nunca foi chegada. “Essas coisas levam 50 anos para sair do corpo”, garante. Agora Sonia pensa em se mudar para Alto Paraíso de Goiás, quem sabe adotar uma criança... “Estou me preparando para a morte”, diz. Mas segue vivíssima, animando pistas e passando óleo de gergelim no rosto para manter a pele boa.

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