Meu amigo Raul Seixas

por Camila Eiroa

Todo o acervo de Raul tem dono: Sylvio Passos. Conheça a história de amizade entre eles, que começou quando o paulistano tinha 17 anos

Sylvio Passos não é só mais um fã de Raul Seixas. Ele é o guardião de toda a sua memória e o criador do primeiro fã clube oficial do cantor, o Raul Rock Club. Não bastasse a responsabilidade de preservar a memória do Maluco Beleza, ele teve a chance de ser amigo pessoal de seu maior ídolo. Tudo começou aos 17 anos, quando resolveu botar um anúncio no jornal para conseguir o telefone de Raul, que acabava de se mudar para São Paulo. 

"Disseram que eu estava louco. Mas aquilo me chapou tanto que eu resolvi botar o anúncio. Que maluco, né? Mas funcionou! Consegui o telefone, liguei, e em pouquíssimos dias lá estava eu na casa do Raulzito para um almoço. Eu era muito novinho, não tinha nem barba na cara", recorda Sylvio

Hoje aos 52 anos, o paulistano da Vila Maria tem muito a contar sobre a convivência com o ídolo. O nervosismo em vê-lo pela primeira vez tomou conta, mas Raul deu um jeito de quebrar o clima de insegurança: "Eu estava estático na mesa, trêmulo e gaguejando. Era como se estivesse na frente de  Janis Joplin e Jimi Hendrix, porra. Pra quebrar o gelo, ele meteu a mão numa travessa de macarrão e colocou no meu prato dizendo 'menino, come aí que você já é de casa'".

"Pra quebrar o gelo, ele meteu a mão numa travessa de macarrão e colocou no meu prato"

Sylvio era mais um daqueles garotos que ouvia rock com os colegas da escola e odiava tudo que fosse cantado em português. "Eu achava o Chico Buarque um chato, o Caetano Veloso um porre", diz. A música que mudou tudo foi Metamorfose Ambulante, do LP Krig-ha, Bandolo! (1973). O encanto foi tanto que ele resolveu esquecer o preconceito e criar o fã clube de Raul, em 1981.

 

A admiração pelo músico nunca acabou, mas o encantamento deu lugar a uma grande amizade ao mesmo tempo em que o fã clube crescia. "Foi o único oficializado pelo próprio músico, surgiu em 1981. Tenho todo o acervo do Raul até hoje. Tem roupas, cartas que ele mandava para namoradas e fotos. É o famoso Baú do Raul", conta Sylvio. Para ele, existe um motivo pela simpatia de Seixas pelo projeto: "Como é que um menino de 17 anos diz estar mais preocupado em preservar a memória do que idolatrar?"

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A convivência se tornou diária e Sylvio estava em todos os rolês preferidos de Raul, das baladas de rock aos restaurantes de comida japonesa. Dormia na casa do ídolo e começou a fazer um bico de roadie em seus shows. "A primeira vez que eu andei de avião na minha vida foi com ele". Entre a diversão e os ensinamentos, Sylvio também esteve presente em momentos que mostravam cada vez mais que o artista era um cidadão comum, que precisava correr ao hospital por problemas de saúde e pagar contas no banco.

"Ele detestava maconha, falava que baiano já era meio lerdo, se fumasse ficaria mais ainda"

Por falar em problemas de saúde, Sylvio desmente a figura doidona que as pessoas têm de Raul. "O que quase ninguém conseguiu captar é que ele era uma pessoa que criou um personagem para vomitar suas insatisfações. O maior problema na vida dele foi o álcool. A única droga que ele tinha uma afinidade era a cocaína. Detestava maconha, falava que baiano já era meio lerdo, se fumasse ficaria mais ainda [risos]. Também nunca tomou ácido, nem pico. Tinha pavor de agulha. A única injeção que ele tinha que tomar era a de insulina para diabetes e pancreatite."

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E há quem diga que chegou o momento em que o criador e a criatura começaram a se confundir. Para o dono do fã clube, a figura de Raul e a ideologia pregada por trás de sua música e dos gritos de "Viva a sociedade alternativa" foram muito fortes para toda uma geração e para o próprio cantor. "Mexeu com a cabeça de muita gente. Conheço quem virou evangélico depois da morte do Raul por achar que estava adorando o demônio. Realmente acredito que teve um momento em que ele próprio se confundiu, provavelmente pelo abuso do álcool." 

"No fundo do oceano existe um baú que guarda segredos
almejados por gênios, sábios, alquimistas e conquistadores
Eu conheci esse baú num estranho ritual reservado a poucos
Hoje eu posso enfim revelar que essa busca de séculos
Foi em vão"
Raul em
A pedra do Gênesis

Esse é o trecho que abre o último disco gravado por Raul, A pedra do Gênesis, de 1988, exatamente um ano antes de sua morte. Para o fã, já demonstra uma insatisfação e o "processo deprê muito grande" pelo qual o cantor estava passando. "Apesar de tudo, ele era um maluco beleza, do bem. Tirava sarro de todo mundo. Mas já no final da vida eu comecei a sentir que ele não estava feliz, andava insatisfeito e irritado. Penso que ele estava morrendo, que a essência dele estava se acabando", diz Sylvio emocionado ao lembrar do final triste da carreira do ídolo.

Com a morte de Raul, em 1989 aos 44 anos, a mãe dele dividiu seus pertences e separou uma grande parte para Sylvio. Hoje, o maior acervo do cantor é do criador do Raul Rock Club, que sempre foi mantido sozinho pelo fã-amigo. "Fui o único louco que seguiu com isso. Já faz 34 anos", diz ele, que ainda hoje mantém contato com a família e se considera um agregado. Todo ano sagradamente no dia 21 de agosto, data de morte do cantor, Sylvio participa da passeata que acontece em São Paulo em homenagem ao Maluco Beleza. Neste ano, fará uma apresentação com sua banda de blues Putos Brothers Band.

"Ele ensinou a não aceitar imposições, a não se curvar, a ter um olhar unilateral para um mundo"

"O maior ensinamento que o Raul me deixou foi eu me conhecer. Fiz uma versão de Meu amigo Pedro, a Meu amigo Raul, falando exatamente isso, que ele me ajudou a reconhecer tudo o que tinha em mim que eu não enxergava. Ele ensinou muito para a legião de fãs que conquistou. Ensinou a não aceitar imposições, a não se curvar, a ter um olhar unilateral para um mundo. Metamorfose ambulante traduz muito isso", conta.

Metamorfose é a música que Sylvio usa de referência para tudo, mas não é a sua preferida. "É mais fácil falar as que eu não gosto! [risos]. Mas quando eu ouço qualquer música parece que estou conversando com ele. Eu entendo cada respiração, cada vírgula, cada coisa que ele está dizendo ali. É como se ele estivesse conversando comigo, mas sem essa punhetagem de divindade. Se ele era um mago? Depende. Se for aquele mago da Disney, não [risos]. Mas se for um mago que consegue transformar palavras confusas em poemas, esse eu posso dizer que sim."

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