Surf e liberdade

por João Prata

O surfista Cisco Araña tem a missão de democratizar o esporte transformando deficientes físicos em atletas!

Cisco Araña é um super-herói brasileiro e poderia muito bem ter criado o bordão missão dada é missão cumprida do controverso Capitão Nascimento. Desde que montou sua pequena sala da justiça no posto 2 da praia de Santos, há 24 anos, perdeu a conta de quantas vidas ajudou a salvar. Equipado com pranchas de surfe dos mais variados tamanhos e modelos, ele resgata pessoas na areia e leva até a onda mais próxima em segurança. 

Valdemir Pereira Corrêa foi um dos primeiros a ser salvo pelo homem Araña tupiniquim. Em 1997, então com 18 anos, escutou em uma rádio comunitária que a prefeitura da cidade tinha uma escola de surfe e aceitava também pessoas com deficiência física. Cego havia quatro anos por conta de um erro médico (erraram na aplicação da anestesia antes de uma cirurgia de glaucoma), decidiu que estava na hora de espantar a depressão e iniciar uma vida nova. 

A escola ainda não tinha um método de como trabalhar com alguém com problema visual. Nem a escola nem o restante do mundo conhecia ainda um surfista cego. O espaço público em que Cisco dava aula existia há cinco anos e fazia pouco tempo havia quebrado a barreira de conseguir ensinar deficientes. O professor não viu problemas e perguntou apenas se Val estaria pronto para entrar na água com a prancha. Ouviu um “com cerveja”, como resposta, a forma como Val mais gosta de confirmar uma informação. 

As primeiras aulas serviram apenas para Val deitar na prancha e entender um pouco o universo daquele esporte. Cisco, no entanto, não queria que ele fosse um aluno café com leite e colocou na cabeça que faria o cego surfar sem a necessidade de ter um professor por perto. 

Precisou de dez anos de pesquisa até produzir a primeira prancha adaptada. A partir dela, inovou e criou um modelo que pudesse colocar no mar gente com qualquer tipo de deficiência. A ideia é simples. Além da prancha, usa basicamente um tapete de borracha, guizos, velcro e aquele espaguete de espuma que as crianças brincam na água – servem para prender e dar sustentação à parte do corpo que a pessoa tem dificuldade de movimento. 

O modelo está se tornando referência mundial. Cisco, por meio de uma associação chamada World Surf Cities, tem espalhado a ideia por onde viaja. A WSC existe em 12 países e nasceu com o intuito de promover negócios relacionados ao esporte radical. Cisco entrou com a pretensão apenas de doar. Viajou para Espanha, Uruguai e Estados Unidos, além de outros Estados brasileiros, para ensinar seu método de trabalho. Em todo lugar que vai, entra em contato com o governo local, dá palestras, aulas práticas e deixa uma prancha de presente para servir de modelo. 

Também conta histórias. Como a do garoto Raphael dos Santos, que nasceu com paralisia cerebral. Em 2013, com nove anos, ele apareceu na escola de surfe em uma cadeira de rodas. Os médicos diziam que nunca iria andar. Cisco o carregou nas costas e com o auxílio de mais três professores colocou o menino deitado sobre uma prancha na água logo no primeiro dia de aula. Foi uma experiência transformadora. O corpo começou a reagir, as doses cavalares de medicamentos foram diminuindo e, após oito meses, Cisco conseguiu aquilo que todo pastor charlatão sonha mostrar para seus contribuintes: fazer um cadeirante levantar e andar. Hoje, pega onda de joelhos e também aprendeu a andar de bicicleta. 

O super-herói dor mares também conta com os olhos cheios d’água quando uma garota de nove anos veio para uma vivência de um dia. Ela pertencia ao Núcleo de Terapia Ocupacional da Puc de Campinas. Tinha 90% do corpo com queimaduras. Foi a única sobrevivente da família que teve a casa incendiada pelo pai. Não andava, não falava e tinha movimento em apenas um dos braços. O professor a pegou no colo e levou até o mar. “Um amigo meu, 50 anos de surfe nas costas, precisou sair de perto. Só chorava. Com ela nos braços, me senti como um soldado na guerra do Vietnã”, lembra. Ao chegar na beira do mar, colocou a garota na prancha de bodyboard e a movimentou de um lado para o outro. “Na hora que olhei para o rosto dela, estava com um sorriso daqui até aqui.”

A missão de proteger os fracos e oprimidos, no entanto, veio por acaso. Francisco Alfredo Alegre Araña é um dos precursores do surfe no Brasil. Começou a pegar onda em 1968, quando tinha dez anos, com uma tábua de 12 quilos e três metros de comprimento. “Precisava de cinco amigos para carregar”. Nunca pensou se tornar professor até receber um inusitado convite da prefeitura, em 1992, quando ainda participava do circuito profissional brasileiro. Movido por desafios que o levaram a títulos nacionais e estaduais no esporte, topou o convite e revela que já ensinou mais de 30 mil pessoas a pegar onda. Cisco, hoje com 57 anos, sabe ainda que sua missão ainda está longe de ser cumprida. Para 2016, pretende tirar do papel um projeto e ampliar o espaço de atendimento aos deficientes físicos. O objetivo é receber 200 alunos por semana – hoje tem capacidade para dar aula a apenas 20. “Existe essa demanda e a gente vai conseguir atender. Falta só encontrar um espaço”, conta.

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