por Camila Eiroa

Show em São Paulo comemorou álbum que marca a parceria de Raul Seixas com Paulo Coelho

Noite de bruxas. 31 de outubro de 2014, ano em que o álbum mais emblemático da carreira de Raul Seixas completa 4 décadas. Em São Paulo, o produtor Xuxa Levy reuniu músicos no palco do Sesc Pompeia para interpretar e comemorar Gita, obra feita em parceria com Paulo Coelho e que reúne canções de composições simples com alquimia subentendida nas entrelinhas. Xuxa diz ser fã do maluco beleza desde criança, e acredita que esse disco é o mais importante da carreira do cantor. "O Raul tem muitas facetas, ele era inteligentíssimo, estava sempre botando o dedo na ferida em questões políticas e sociais e, ao mesmo tempo, fazia uma música popular e tinha um lado sensível muito forte. Sem contar o misticismo. Se você olhar as letras feitas com o Paulo Coelho, dá para notar a influência do Ocultismo e de Aleister Crowley (ocultista britânico membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada), que era algo muito presente na parceria dos dois. Eles estavam a mil por hora".

A ideia de fazer o show surgiu pelo significado que Gita tem não só para o produtor, como para o cenário musical brasileiro. A banda foi formada por nomes que talvez não dividissem o palco em outra oportunidade se não fosse por Raul; BNegão, Fernando Catatau, Zé Geraldo, Rubi e Mauricio Pereira. “Raul é um dos grandes ícones do rock brasileiro desde quando eu era pivete. Eu sou de Fortaleza e lá os maiores ícones são Pink Floyd e ele. Ele é o grande ícone do rock rebelde do Brasil”, conta Catatau.

Sobre a escolha dos artistas, Xuxa Levy explica que cada um tem o papel de representar um dos lados do cantor. “A gente chamou cada artista pensando em quem poderia reproduzir cada faceta. Para o lado crítico e irreverente, o Mauricio Pereira, d'Os mulheres negras. Para o cara do dedo na ferida, BNegão. O lado sensível e doce do Raul ficou com o Rubi. O Catatau representa essa coisa bem popular do nordeste misturado com as guitarras elétricas. E, por fim, o cara que herdou o público do Raul Seixas que é o Zé Geraldo. Depois que o Raul morreu, o público adotou o Zé por ele ter um conteúdo artístico muito parecido”.

No backstage, todos do elenco pareciam extremamente animados e ansiosos pela noite que logo começaria. Rubi confessou à Trip que sua relação com o cantor veio através do rádio. Sua formação acadêmica é o teatro e a música é um conhecimento “intuitivo”, segundo ele. “Meu cantar tem uma influência muito grande do teatro e o verbo tem uma importância enorme pra mim. Essa importância eu encontro na música do Raul, ele demonstra uma preocupação pelo discurso e pela palavra enquanto canta”. Quando perguntado sobre a originalidade das canções de Raul para os tempos atuais, ele é certeiro na resposta: “a obra dele fala de todas essas questões políticas e sociais com extrema poesia, melancolia e verdade. Isso tem a capacidade de causar o desconforto, de dar colo e carinho, mas ao mesmo tempo cutucar e provocar. Cabe exatamente para o momento em que vivemos”.

 

"Raul não era transgressor de boutique, era um coração inquieto de verdade. Tem muita angústia nele e sua música expressa isso completamente" Mauricio Pereira

 

O cantor Mauricio Pereira compartilha da opinião de Rubi e conta que conheceu Raul quando estava no ginásio, logo que saiu o álbum Krig Ha Bandolo. “Me chamou a atenção porque ele era maluco e fácil de entender. Se você é um moleque de 11 anos e escuta as músicas, você entende que existe Deus e o diabo, o bem e o mal e a transgressão. Fiquei louco por Ouro de Tolo, como é possível tanta letra com uma melancolia que dava pra uma criança entender?” Quando já estava na faculdade, viu de perto um show do “malucão, filósofo e pensador”, mas depois de ter sua formação musical consolidada, teve de redescobrir as músicas de Raul Seixas. “É muito difícil ser simples na vida quando se está metafisicando. A beleza do Raul é essa, ele é um cara que conseguia falar de coisas vitais de um jeito que todo mundo entendia, com músicas bem escritas, libertárias e loucas”, conta. E completa: “ tem coisa que eu ouço do Raul que dá medo. O tamanho que Deus assume nas letras assusta, é como se fosse um inquisidor que está observando tudo e pode julgar a qualquer momento. Essa junção com o Paulo Coelho foi especial, anarquizante. Raul não era transgressor de boutique, era um coração inquieto de verdade. Tem muita angústia nele e sua música expressa isso completamente”.

Mauricio é o primeiro a subir no palco. Quando as luzes se acenderam, a chopperia estava lotada de pessoas completamente diferentes. Como uma forma de demonstrar o poder da música do maluco beleza, senhoras de 60 anos aguardavam ansiosamente ao lado de crianças de 13 anos, homens e mulheres de 30 e algumas figuras-ícones da sociedade alternativa, como Sylvio Passos, criador do Raul Rock Club. Sessão das Dez foi a canção que abriu o repertório. Logo em seguida, o performático e teatral Rubi emocionou a todos com os versos “sonho que se sonha junto é realidade”. Porém, o que viria em seguida deixaria todos na plateia extasiados. O rock com baião de Raul Seixas estava presente no suingue de BNegão que, ovacionado pelo público, deu o grito da noite: “com esse som foi plantada a semente da sociedade alternativa. Viva o mestre Raul Santos Seixas”. A imagem do homenageado da noite estava sendo projetada no fundo do palco em todas as músicas.

 

"Nenhum cantor da nossa geração chegou na alma das pessoas com tanta profundidade quanto Raul" Zé Geraldo

 

Para continuar com a sonoridade nordestina, Catatau era o próximo a se apresentar. Na plateia, ouviam-se cochichos de “como ele parece o Raul, né?”. Concentrado, mandou S.O.S e Um som para Laio. Xuxa, nos teclados, parecia mais do que animado com o caminhar do show. Aqui, o último respiro antes do momento mais emocionante da noite, quando Zé Geraldo subiu ao palco cantando O Trem das Sete. Com os olhos marejados e ovacionado pelos presentes no Sesc, disse estar muito emocionado e feliz por estar reverenciando a obra de um de seus companheiros de música. “Um dia me levaram na casa de Raul, que estava na sala deitado em duas listas telefônicas assistindo Jeannie é um gênio, ele era apaixonado por ela. Nenhum cantor da nossa geração chegou na alma das pessoas com tanta profundidade quanto ele. Das favelas aos grandes casarões, todos amam Raul”, contou antes de emendar Medo da Chuva.

Antes de continuar o repertório, a voz de Raul surpreendeu a todos como uma gravação que dizia “o bem e o mal como sendo uma coisa só”. Foi quando os músicos voltaram ao palco para acompanhar Zé na mística Gita. Entre os versos de “o início, o fim e o meio”, a noite parecia estar exatamente no meio de tudo, um momento à parte de qualquer sexta-feira comum. Aplaudidos, engataram com a bateria o hino “viva a sociedade alternativa”. Na quinta repetição, a luz do palco simplesmente apagou – Halloween, ocultismo e Raul Seixas: pra não esquecer nenhum detalhe. A plateia gritava “toca Raul!” e Xuxa Levy continuava a chamar por Sociedade Alternativa, que começou a ser cantada sem microfones. A luz voltou e iluminou todas as vozes que cantavam juntas o maior hino do maluco beleza.

BNegão, entre tantos aplausos, finalizou dizendo que “todo homem tem direito de amar”. Assim que os instrumentos silenciaram e as luzes diminuíram, via-se escrito ao fundo do palco: “nunca é tarde demais pra começar tudo de novo”.

E nunca é tarde demais pra relembrar a obra de um dos grandes da música brasileira. Uma noite para guardar na memória.

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