por Luiz Filipe Tavares

Aos 80 anos ele largou a publicidade para investir em sua grande paixão: os quadrinhos

Pouco antes de completar 80 anos, Milton Sobreiro decidiu mudar de ares, abandonou uma bem-sucedida carreira e investiu todo seu tempo na produção de páginas e mais páginas que já chegaram a uma das maiores revistas do mundo, a Heavy Metal e nas coletâneas americanas Cthulhu Tales, Zombie Tales e Popgun (Image Comics). Sem dúvida um bom começo no meio da HQ e a tendência, felizmente, é melhorar ainda mais. 

Nascido na cidade de Cruzeiro (SP) em 1932, ele foi diretor de arte de algumas das maiores agências do Brasil e da América Latina, cuidando de algumas das contas mais relevantes do país, como as do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e General Eletric. Por 14 anos morou em Bogotá, na Colômbia. Já nos anos 00, enfastiado com o meio da propaganda, estabeleceu residência em Brasília, abandonou o barco dos grandes anunciantes e, aos setenta e poucos, dedicou-se de corpo e alma à arte que aprendeu a admirar desde menino.

Por telefone, o Sobreiro "Sênior" (pai do colorista e também desenhista Felipe Sobreiro, destaque na HQ nacional e com trabalhos publicados no exterior) abriu o baú de sua memória e falou com muita paixão sobre a arte, o prazer de desenhar e o gosto pela mudança, seu passo profissional mais ousado e a admiração eterna pelo trabalho e caráter do filho e companheiro de trabalho.

Trip - Antes de mais nada, qual foi a maior motivação que te levou a voltar-se totalmente para os quadrinhos? O senhor se lembra de como seu amor pela HQ começou?
Milton Sobreiro - Olha, isso não é nada recente [risos]. Isso vem desde menino. Eu fui alfabetizado praticamente só com quadrinhos, com as revistas da época, que eram quase todas americanas. Elas eram traduzidas e publicadas pelos nossos jornais, especialmente no formato tirinha. E eu aprendi a ler ali. E sempre me interessei, especialmente por causa do desenho. Me admirava muito o traço do Harold Foster (Príncipe Valente), o Alex Raymond (Flash Gordon), o Milton Caniff, que é pai da arte do Hugo Pratt. O próprio Moebius, esse gênio, que faleceu recentemente. Ali eu via a arte retratada com tanta variedade que isso me inspirava.

Mas o que deu o empurrãozinho que faltava em direção à HQ?
Ah, isso foi principalmente o meu filho, Felipe, que através dessa máquina maravilhosa que é a internet entrou em contato com gente de todo o mundo. Ele praticamente me reintroduziu na história em quadrinhos. Através dele eu conheci um time de roteiristas mexicanos que estavam começando na área e estavam tentando abrir caminhos. Juntos publicamos e continuamos a publicar algumas coisas. E aí pronto: começamos a fazer histórias. Não sou remunerado como na publicidade, pelo menos por enquanto, mas já estou muito mais feliz fazendo isso. Voltei à minha infância. 

O senhor já citou alguns bons nomes que o levaram a gostar de quadrinhos e eu gostaria de falar um pouco mais sobre eles. Quais são suas maiores influências no mundo dos quadrinhos?
Meu Deus do céu [risos], são muitos. Mas principalmente esses: Harold Foster e o Príncipe Valente é uma coisa. O Alex Raymond, que fez o Flash Gordon por muito tempo e depois passou a fazer o detetive Nick Holmes... O Milton Caniff foi muito importante pra mim também, por ser um mestre da técnica de claro/escuro, um desenho bem quadrinhos mesmo. Na minha visão ele é o homem no limiar da modernidade no quadrinho. Ali bebeu Hugo Pratt e bebi um pouco também. Eu tenho essas influências mescladas. Gosto de contemplar essa gente. Sempre me espelho neles. 

O próprio Moebius também, como o senhor disse anteriormente, é um nome que sempre aparece nas listas dos desenhistas...
Sem dúvida. Para admirar, para gostar e para se entreter, Moebius era dono de uma versatilidade fabulosa. Ele faleceu recentemente... E ainda dividia toda sua arte em dois artistas ao mesmo tempo: Moebius e Jean Giraud. Dois artistas em um, uma coisa fabulosa de verdade.

E foi uma grande perda logo no início do ano...
Exatamente. Suas duas facetas eram muito diferentes e ainda assim excelentes. Eu não sei como uma pessoa pode ser duplamente excelente [risos]. Eu confesso: eu morro de inveja disso [gargalhadas]. É inveja mas é no bom sentido. Inveja de admiração.

Como é seu processo de criação? O senhor gosta de trabalhar em uma história por vez ou prefere atacar várias ao mesmo tempo?
Atualmente eu tenho trabalhado em várias histórias ao mesmo tempo. Várias coisas com estilos diferentes, o que me ajuda a distinguir uma da outra. Tenho feito coisas bem variadas...

Quantas horas por dia você desenha? 
Eu transferi o estúdio da minha casa aqui em Brasília. Eu saio todo dia da zona sul, que é onde eu moro, e atravesso a cidade para chegar até a zona norte, na casa da minha filha. Ela estuda na UnB e me ofereceu um espaço para fazer meu estúdio aqui. Eu topei, também para ficar mais perto dela, afinal de contas. Eu venho lá do Bandeirantes de manhã e desenho até umas 19h. Então é mais ou menos um horário comercial mesmo. Ainda não peguei atrasos e apuros para ter que virar a noite como eu fazia na época da publicidade [risos].

Isso é bom, certo?
É ótimo! E eu sou uma pessoa que trabalha rápido. Tenho muito prática. Também, se essa idade não me desse prática, eu não sei o que daria [gargalhadas]. Eu digo sempre que tenho um pouquinho de prática, por isso desenho com alguma rapidez. Eu prefiro dividir uma página em dois dias, assim fico mais confortável. Agora, espero em breve ter que me dedicar das 7h às 22h, quero que o pessoal me mande mais trabalho. 

"Não sou remunerado como na publicidade, pelo menos por enquanto, mas já estou muito mais feliz fazendo isso. Voltei à minha infância"

 

O senhor fala bastante do Felipe, que é um cara que está cada vez mais conhecido no meio.
O Felipe é uma maravilha. É um cara que se inspirou um pouquinho em mim porque eu sempre mexi com arte. Então, ele desde menino, muito danado, sempre foi desenhando. Ele também se alfabetizou com as histórias em quadrinhos que eu dava. Eu tenho um orgulho imenso do meu filho.  

Até que ponto seu trabalho é influenciado por ele e vice versa?
Bom, a minha presença como artista e desenhista na vida dele o influenciou bastante. Tanto que ele estava cursando Filosofia, largou de repente e foi fazer Belas Artes. Nesse momento há mais uma parceria entre a gente. Ele tem um estilo de desenho que é bastante diferente do meu. Eu sou mais... retrô [gargalhadas]. Ele é mais atual do que eu. Isso é inevitável, não tem jeito. Eu o admiro profundamente. Ele pinta minhas coisas. Faço as linhas em branco e preto e o Felipe bota cor, o que melhora 90% o meu trabalho. Fica muito mais gostoso.

Quais são suas metas na HQ? Tem alguma graphic novel nos planos?
Agora eu estou trabalhando com a Alex [de Campi, também diretora de videoclipes], uma senhora roteirista que me convidou para substituir um artista com quem ela teve uma pequena dissidência. Eu já fiz oito páginas com ela e estamos nos entendendo [a continuação da série Smoke, que concorreu ao prêmio Eisner por melhor mini-série em 2005]. Ela está apreciando meu trabalho. Tem muita coisa boa chegando por aí.

Vai lá: www.flickr.com/sobreiro
www.milton.sobreiro.com

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