O bamba do bambu

por Redação

Pegue carona na bike feita de bambu do septuagenário arquiteto carioca José Luiz Ripper



Pedala, Ripper! De rolê no Rio na bike de bambu, o arquiteto ciclista sempre
atrai olhares curiosos quando passeia no calçadão. Na outra página: o
laboratório onde ele explora novas possibilidades para sua matéria-prima

Por Filipe Luna // Fotos Calé

Quando ele pedala no calçadão de Copacabana nem todo mundo repara que sua bicicleta é um pouco diferente. Mas quem percebe não consegue disfarçar o espanto nem conter o entusiasmo. “É de bambu essa bike?” José Luiz Ripper já está até com saudades de ser constantemente questionado. Faz dois meses que ele não circula em sua magrela. A correia está quebrada. A bicicleta, projeto de conclusão de curso de um antigo aluno, é o objeto mais curioso do laboratório de pesquisa do professor, na PUC do Rio de Janeiro. Perdido em meio à paisagem árida do estacionamento da faculdade, o grande galpão rodeado de árvores, arbustos e, é claro, bambu é a segunda casa do professor (a primeira, ele divide há 35 anos com dona Nair Alves, com quem teve Lucas, 24).

Entrar no incrível laboratório do doutor Ripper é dar um salto em um lugar que não é cidade nem campo. A luz natural imerge difusamente das laterais e do rasgo no topo do telhado de armação metálica. O barro cru espalhado pelo ambiente e as dezenas de estruturas feitas da planta com a qual ele escolheu trabalhar reforçam o clima de conforto. É fácil esquecer do trânsito lá fora e dos aperreios do dia-a-dia. Aqui o tempo passa mais devagar. Nem parece que lá se vão 18 anos.

Ripper já está completando a maioridade em seu trabalho com o bambu. Foi em 1988 que um colega de universidade, Kosrow Ghavani, lhe apresentou a planta. “O que me fascinou foram as propriedades do bambu”, lembra Ripper. “É muito leve e a resistência dele é incrível.” Não foi a preocupação ecológica que o atraiu, pelo menos não a princípio, apesar de sua forte ligação com a natureza. Desde pequeno, Ripper e o oceano são inseparáveis. A paixão começou onde ele nasceu, no Posto 6 em Copacabana, em 1935, tempo em que, segundo o próprio, a praia “ainda era a princesinha do mar”. Ficou pouco tempo, mas, apesar de ter apenas meses de idade, suas primeiras memórias são de lá. Logo mudou-se para a Ilha do Governador e viveu alguns dos melhores dias da sua vida. “Ali a gente vivia no espírito, não era nem na matéria, era uma beleza. Não tinha ponte ainda, só se chegava de barco. Uma ponte acaba com uma ilha, metade da magia vai embora.”

 Cercado de água por todos os lados começou a dar suas primeiras braçadas, iniciando sua epópeia pelos esportes aquáticos. Nadou, vestindo a camisa (ops, sunga) amarelinha, em um campeonato mundial universitário na Alemanha, tirando segundo lugar no revezamento e quarto na prova individual dos 100 metros livres. A natação ainda o fez um dos mais rápidos atacantes da gloriosa e lendária equipe de pólo aquático do Fluminense, que, em meados da década de 50, manteve-se invicta por mais de uma centena de jogos. Pesca submarina e surf também fizeram parte de seu cardápio esportivo. Ripper foi dos primeiros a subir numa prancha de fibra de vidro no Arpoador. Começou tarde, aos 30, não era dos mais habilidosos, mas não tinha medo de onda grande. Dropava o que viesse pela frente.
 
Armando concreto
Até encontrar uma onda maior do que ele esperava (fazendo-o abandonar sua incipiente carreira esportiva): a arquitetura. Fascinado pelo status que a profissão tinha na época, largou a sunga e a touca e agarrou a lapiseira e o escalímetro. “A minha geração abraçou a modernidade”, reflete, “eu queria ser moderno e, isso, naquela época, era a faculdade de arquitetura.” O jovem Ripper matriculou-se na Faculdade Nacional de Arquitetura sem saber quem era Le Corbusier — famoso arquiteto suíço e maior expoente do modernismo. “Em 53, 54, não conhecer o Corbusier era um pecado capital. Porque o ensino da arquitetura só tratava de uma técnica que era o concreto armado. Só.”

 O arquiteto iniciante demoraria um pouco, ainda, para se livrar da ditadura do concreto. No início, ele mergulhou fundo nisso. Fundo mesmo. Mergulhava em profundidades de até 20 metros em seu primeiro grande trabalho, a construção de fundações de uma ponte na Bolívia. “Parecia que eu estava num filme mexicano”, diz entre risos, “o povo dava tiro para tudo que é lado, foi uma experiência.” Depois de escapar das balas bolivianas, ele ainda trabalharia em monumentos de concreto. Ripper chegou até a chefiar obras em Brasília, além de ter participado da construção da Cidade Universitária, em São Paulo.
 
Bambu para toda obra
Não era a arquitetura do concreto que Ripper descobriria como sua. A preocupação com a ecologia e com a integração do homem na construção foram aos poucos se desenvolvendo no seu trabalho. “O homem se afastou da natureza porque, por muito tempo, teve a ilusão de que a controlava”, analisa. A pesquisa com bambu é um dos caminhos possíveis para superar essa distância, enxerga Ripper. Nem a madeira é uma alternativa tão boa. “Chega um momento em que tem que cortar o bambu. Mas não é a planta inteira, é algo que sai dele, o bambuzal continua lá dentro da terra. Já a árvore não. O cara corta uma árvore de 300 anos e diz que daqui a 30 anos tem uma igual. Tem, mas não uma de 300. O material mudou, o organismo mudou”, afirma. “É um absurdo hoje cortar uma árvore para construção. O mínimo que tiro de bambu já é uma porcaria. Tento fazer o menor dano possível, não vou ficar parado.”

Mas não é só o material que define uma boa habitação. Existem muitas técnicas que podem chegar a resultados semelhantes. “A habitação depende muito do ambiente em que ela vai ser construída”, reflete Ripper, “tem que conhecer tudo sobre o local para que ela se adapte da melhor maneira possível. Os materiais e a técnica dependem do ambiente, não o contrário.” Por essas e outras que o professor não se anima com a construção industrial, pré-moldada, que existe hoje e que é muito usada em projetos de habitação popular. “Habitação popular não é um problema técnico”, afirma o professor, “é um problema social e econômico. Tem que envolver a população na construção, na retirada do material, nas decisões.”

Se não for assim, nem o bambu salva. É só ver o fracassado projeto Funbambu, do governo da Costa Rica. Construíram casas com o material de maneira industrializada — um pré-moldado de bambu. As pessoas que as receberam não tinham ligação com a habitação e nem sabiam com o fazer a manutenção. O resultado foi um fracasso monumental. Caminho bem diferente o Mr. Bambu tem conseguido desenvolver em seu laboratório, junto a seus alunos e outros pesquisadores. Eles trabalham para desenvolver estruturas com a planta que sejam extremamente resistentes, seguras e, ao mesmo tempo, leves. Um de seus projetos, uma capela em Andrelândia (MG), foi construído com estruturas de bambu  revestidas com barro cru. Outro de seus projetos é uma armação em forma de meia esfera para construções sobre águas paradas, como lagos e represas. Nada disso ainda tem uma solução final pronta, ele não gosta disso. Sabe que sua pesquisa está sempre em andamento.

E Ripper não tem pressa para encontrá-las,  vai vivendo a vida no seu tempo. “O problema é que hoje o lento é desvalorizado. Se você é pobre, anda a pé, não tem carro, não tem jatinho. Bertrand Russell disse: ‘A velocidade não é um bem em si, é melhor chegar aos céus lentamente que ao inferno rapidamente’.” Se a rapidez é um índice, Ripper está no caminho do paraíso. Mas vai chegar lá devagar — a bordo de uma bicicleta de bambu.

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