por Arthur Guimarães
Trip #181

Advogado que virou xamã cria fórmula para curar viciados em crack e álcool de São Paulo

Éramos sete corpos, alguns nus, outros não, mergulhando como peixes canibais em um lago gelado no inverno. Submergidos num lodo no meio da mata atlântica paulista, enfiávamos com toda força uma lata velha no fundo do pântano para tirar de lá a lama para nosso ritual. Fora da água, ainda sob a orientação de nosso guru, começávamos a pisotear freneticamente o chão de terra úmido, entoando um grito indígena. Sujamos uns aos outros e deitamos no mato para um bronzeamento diferente. Nos solidificamos ao sol. Estátuas pregadas a um divã atemporal. O que a pele tinha de dura, a mente tinha de rápida. Próximo passo: ser chicoteado por hastes de espadas-de-são-jorge.

As cenas fazem parte de um ritual conduzido pelo advogado paulistano Walter de Lucca, 67 anos, que desde o começo da década de 90 leva a cabo um trabalho subversivo de recuperação dos moradores de rua e viciados em crack do centro de São Paulo. A ideia é promover a depuração do corpo usando a ayahuasca, bebida que é a essência da religião do daime. O advogado-xamã não segue as doutrinas da religião oficial – é um dissidente da Flor das Águas, uma das primeiras igrejas do chá em São Paulo. Seu trabalho, em muitos casos, funciona, libertando os usuários do vício. Trip participou de uma dessas sessões, no fim de agosto, em um sítio em São Roque, interior de São Paulo.

A experiência é ecumênica. Um misto de tradição indígena, passados caboclos, cultura acriana, resquícios católicos, psicodelia, experiência própria e malandragem. Naquela tarde, além da lama e dos açoites com espadas-de-são-jorge, tomamos ayahuasca vinda de Rondônia, em uma cerimônia de quatro horas, ao redor de uma fogueira. Todos em silêncio, somente quebrado pelo som dos animais e de tambores, flautas, maracas e sinos do xamã.

Além de mim, estavam na reunião comandada por De Lucca e registrada pelo fotógrafo João Wainer: Luiz Antônio Leite (amigo e fiel escudeiro do xamã), Bruno Ramos, psicólogo que atua com redução de danos na Cracolândia, Paulo Martins, ex-alcoólatra pesado do centrão – recuperado pelo chá –, e Rogério Guimarães, um dos casos mais complicados que já passaram pelas sessões. Ex-usuário, ex-traficante e ex-presidiário – após ter sido detido com 200 pepitas de crack na região da Luz –, fumou descontroladamente por dez anos e era tido como um caso perdido. “Ele brigava, dava com pau na cabeça dos outros. No primeiro ritual com o chá, gritava sem parar, como um capeta. Coisa de doido. Para ajudar, cantei um hino que falava ‘eu te amarro’. E o amarrei mentalmente. Ele passou quatro horas gritando e rindo feito um doente, mas parecia preso sentado”, recorda De Lucca.

Rogério é a prova de que o processo experimental pode funcionar. “A ayahuasca me fez um novo homem. Parei para pensar nos meus defeitos e virtudes, me corrigi, mudei.” Agora Rogério tem um emprego, como vigia de um centro de reciclagem no Glicério, onde ainda mora sob os viadutos. “Não sinto vontade de me drogar. Prefiro tomar o chá, uma coisa natural. Faço em muito menor escala e de forma muito mais positiva”, argumenta, em um discurso articulado de quem realmente parece ter sarado.


Nariz escorrendo
A iniciativa de Walter De Lucca começou há cerca de 15 anos, quando ele e seus amigos ajudaram a fundar a Associação Minha Rua, Minha Casa, um espaço que ainda funciona sob os viadutos do Glicério. Lá atendiam mendigos, viciados, catadores e outros andarilhos. A rotina era bem diferente da vista em albergues. Havia maior liberdade, camaradagem e espaço para atividades coletivas, normalmente relacionadas às artes plásticas. Foi lá que os primeiros interessados foram recrutados. “Aquilo era anárquico”, lembra o xamã, que teve sua formação afinada em incursões na Amazônia peruana e no Acre.

Em seu trabalho na instituição, De Lucca tinha que percorrer todo o centrão, prestando atendimento, encontrando gente necessitada e muitas vezes afundada na bebida ou no crack. Nessas andanças, ia ventilando sua proposta para quem mostrasse interesse. O disse me disse da rua também espalhou a notícia sobre um novo tratamento alternativo. “A gente nem precisava ir atrás. As pessoas vinham nos procurar. Sempre tem os arrependidos, cansados do sofrimento da rua. Não parece, mas está cheio de gente querendo sair dessa vida degradante. Mas falta vaga na prefeitura, e faltam também assistentes sociais preparados”, argumenta.

O respeito com os recuperandos era outro segredo do sucesso. Tudo era feito por espontânea vontade dos moradores de rua, e as únicas regras eram: não se drogar nem beber durante o processo. “Não tinha nem entrevista para saber qual o problema de cada um. Todos eram tratados de forma igual, como seres humanos que se deram conta de que precisavam melhorar”, afirma ele. Também ajudava a segurar esse grupo na recuperação a expectativa pela ingestão do chá, que só ocorria como última etapa. “O ápice era a sessão do chá. Eles sabiam que a introspecção profunda causada pela bebida seria a verdadeira ferramenta. Por isso, se esforçavam para manter a linha”, acredita De Lucca.

Chegaram a essa etapa umas 200 das cerca de mil pessoas já atendidos por De Lucca. Durante o ritual, o xamã percebia as fraquezas. “Não sei explicar, mas você olha para a pessoa e percebe onde está a fragilidade. Um tinha cirrose. Outros, câncer ou Aids.” Os usuários de derivados da coca eram logo identificados. “Na hora da catarse, começa a escorrer o nariz sem parar. Fica aquela coisa suja, limpando toda hora. O nego enfia o dedo inteiro e não sossega.” Para completar o tratamento, nesses momentos de desespero, De Lucca lançava mão de artifícios aprendidos na lida com o povo de rua. “Se o cara fosse muito cristão, eu rezava um terço. Tínhamos que nos guiar pelo que fazia sentido para o sujeito. Tem hora que não adianta fazer oração indígena para alguém que vive em igreja.”

Cachoeira e mãe Oxum
Quando as sessões de tratamento eram mais frequentes, os excluídos, noias e andarilhos deixavam o Glicério, a Cracolândia e a praça da Sé para primeiro chegar ao terminal Capelinha, na zona sul, guiados pelo auxiliar do xamã na empreitada, Luiz Antônio Leite. Eram de 15 a 20 pessoas por fim de semana. Todos pegavam um ônibus a caminho do sítio original, em São Lourenço da Serra, no km 301 da rodovia Régis Bittencourt. “Desse ponto da estrada ainda faltavam 12 km de estrada de terra, que eles andavam a pé, descalços, sentindo o chão de verdade. Uns voltavam, outros começavam a beber e a se drogar. Em quem ficava, dávamos um primeiro banho de cachoeira no caminho, em nome de mamãe Oxum”, explica Leite.


Após a caminhada, eles já chegavam mais calmos à chácara. Inicialmente, cantavam, tocavam violão e comiam (normalmente, comida vegetariana). “Mesmo com o vício, eles ficavam. Até porque metade já tinha ido embora. Era para quem queria mesmo”, fala De Lucca. Em 95, um grupo mais coeso deu força ao modelo de tratamento. “Começava com o banho de lama, que é uma coisa legal: você tira a roupa, fica nu na frente do outro. É banhado, o que quebra essa coisa fechada do mendigo. Depois, dentro da tradição indígena, fazemos cantigas e os deixamos no sol. Imagina o que significa tornar estáticos caras que estão falando o tempo todo, passam o dia todo embaixo do viaduto, discutindo, ouvindo barulho de carro e brigando. É um choque.”

Sangue da amazônia
Quem estava levando o desafio a sério passava a semana por lá, entrando mais no ritual. Eram feitas massagens, meditações e saunas naturais, em que uma panela com uma mistura de ervas fervente era colocada sob uma cadeira sem o assento – enquanto o interessado fazia uma cabaninha com várias mantas. Também eram usados processos mais duros como misturas de ervas laxantes e que induzem o vômito, como a yawarpanga, trepadeira conhecida como o “sangue da Amazônia”. Dilacerada, ela toma uma cor vermelha e, ingerida, gera leve alteração de consciência. Nesse estado, a pessoa começa a tomar doses cavalares de água – eu, por exemplo, bebi e coloquei para fora 10 l. “Chegava a ter 20 negos vomitando simultaneamente”, comenta De Lucca. As lavagens intestinais eram outro momento crucial para que todo vestígio do submundo urbano fosse eliminado. Era feita uma faxina com água esguichada reto adentro. “Eles se sentem mais limpos, cria-se uma visão de limpeza que vai dominando o sujeito. E é assim que larga a bebida e o crack”, explica o xamã.

Após esse passo a passo, os moradores eram colocados em barracas de lona montadas no meio do mato, em regime de dias comendo exclusivamente arroz integral sem sal. Na fase final, para quem continuava firme em seus propósitos, eram feitas as sessões de ayahuasca. Nem tudo, no entanto, funcionava numa boa. Largar drogas tão pesadas é complexo, principalmente quando chega o momento do chá altamente alucinante. Alguns começavam a correr. Outros a gritar. “Era quase um exorcismo. Afloravam as impurezas mais imundas. Eles viam demônios, relatavam mergulhar em piscinas com cobras. Tínhamos que agarrar os caras para não fugirem sem rumo na escuridão.”

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