Escolinha do Professor Jefferson

por Redação

A explicação de por que a CPI é um formato televisivo vencedor

As CPIs nos reforçam a idéia de que a fronteira entre reality e show não existe mais e o governo, velho defensor da política do pão e circo, se efetiva no papel de circo

Além de todas as qualidades morais e cívicas, a CPI é um formato televisivo vencedor. Com uma estrutura dramática que combina drama judicial, O Aprendiz e A Escolinha do Professor Raimundo, o programa alavancou a audiência da TV Senado. E a dose cavalar de CPIs na cabeça da nação tem também qualidades colaterais. Uma delas é deixar claro que a fronteira entre reality e show não existe. Nunca existiu. Ninguém ainda inventou forma de governo mais efetiva que a política do "pão e circo". A novidade é que a própria política está fazendo o papel do circo. Nossos representantes estão, enfim, representando.

Durante uma das sessões da CPI dos Correios, a juíza Denise Frossard lançou do âmago do tailleur um dos seus fulminantes veredictos, dessa vez dirigido aos próprios colegas que inquiriam a esposa do vilão careca. "CPI não é lugar para perguntar ‘o que vocês conversam na cama, como vocês explicam isso aos filhos?’. CPI é coisa séria", ela disse. Concordei com a juíza até que a pulga cínica que acampa atrás da minha orelha se manifestou: "Esse tipo de pergunta não conteria uma intuição vanguardista, que já entendeu que o programa político hoje é só um programa? E nesse tipo de programa não seriam as intimidades de cada personagem aquilo que mais importa?".

A pulga ainda me lembrou dos EUA, terra de 200 anos de democracia, onde os crimes ou mentiras que podem levar, digamos, a um impeachment, envolvem, digamos, charutos e estagiárias. E não envolvem, digamos, guerras genocidas, baseadas, digamos, em motivos escandalosamente falsos. Na política, a mentira rasteira sempre foi a campeã de audiência. Nos EUA ou no Brasil. Isso até a entrada em cena do personagem dirigido e estrelado por Roberto Jefferson. O ex-advogado do Povo na TV, programa-avô de toda a atual lama televisiva, entendeu que para emergir da lama política teria que afundar na verdade.

Sincericídio de Duda Mendonça
No momento em que escrevo, caminho parecido é seguido no Legislativo por outro homem que conhece as leis da mídia, Duda Mendonça. Num tom parecido ao de suas campanhas, ele aposta num sincericídio à queima-roupa para convencer o público. Louvável. Louvável, desde que a sinceridade não passe de finalidade ética a estratégia de atuação. Na era dos reality shows, isso é possível. A verdade deixa de ser uma categoria distinta da ficção. Ao contrário, opera como elemento da ficção, dá crédito à artificialidade, integra uma fórmula para ganhar público. Um programa como Big Brother usa e literalmente abusa de personagens verdadeiros, mas pode acabar resultando mais rocambolesco que uma novela. Um programa como O Aprendiz pode resultar – e resulta – mais artificial que sua própria paródia – ainda que a paródia, "O Infeliz", seja estrelada por um anão, dois travestis e um Tiririca. Comparar as CPIs aos reality shows pode soar politicamente incorreto. É claro que acho as CPIs importantes. Prefiro mil vezes a luz, mesmo que a dos holofotes da TV, à escuridão de um populismo de vocação ditatorial. E acredito que apuração da verdade verdadeira é sempre fundamental. Fundamental, desde que exista para levar rapidamente a resultados objetivos, pautados pela racionalidade. E não que se baste como fim em si, como psicodrama geral, catarse de conseqüências apenas simbólicas.

Tem mais é que rolar uma vaia enorme para essa onda de corrupção que envolve tantas estrelas da representação pública. Óbvio. Mas que role também um esforço para entender uma nova ordem igualmente desonesta que quer exercer a suplência. Antes que o Senado vire a TV Senado. Antes que Roberto Jefferson vire Orson Welles. Antes que tudo vire verdade. Antes que a vida vire o reality show da vida.

*CARLOS NADER, 41, É VIDEOARTISTA. NUNCA FILMOU REALITY SHOWS, CPIs OU ESCOLINHAS DE PROFESSORES RAIMUNDOS
Ilustração Eduardo Kerges

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