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por Marcelo Fló
Trip #249

A trajetória de Sidão Tenucci, morto em outubro aos 61 anos, se confunde com a história do surf brasileiro. Marcelo Fló repassa detalhes da trajetória do amigo

Não consigo imaginar palavras mais adequadas para iniciar este texto sobre o amigo Sidão que não as últimas proferidas pelo replicante Roy Batty, no filme Blade Runner, de Ridley Scott: "Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque ardendo no ombro de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer".

A perda de Sidão Tenucci, morto aos 61 anos no último dia 6 de outubro, vítima de câncer, altera algumas perspectivas, apesar de não mudar em nada a essência de tudo que passamos, nem a história de uma geração, a primeira do surf paulista, em especial do Guarujá, lugar que marcou indelevelmente toda a vida do Sidão (e a nossa), como uma marca-d’água.

No início – final dos anos 60 – era uma turma diversificada, a maioria saída dos melhores colégios de São Paulo, com interesses distintos, como andar de kart nas Astúrias, jogar tênis na praia, mini-tênis, tamborete – o Sidão adorava as peladas no final de tarde nas Pitangueiras. Mas todos já tinham um pé na água, pegando jacaré, onda de peito, em cima de pranchas de isopor (Planonda).

De repente, surgidas sabe-se lá de onde, como aquele monolito negro do filme 2001 Uma odisseia no espaço, pulularam várias pranchas de surf, eram São Conrados, Glaspacs, Hobbies e tantas outras, que abduziram cada um daqueles moleques, conduzindo todos para o mar de forma irreversível.

A ilha de Santo Amaro nunca mais foi a mesma e, simultaneamente, tribos distintas de surfistas começaram a surgir nas Pitangueiras, nas Astúrias e no morro do Maluf. Entre elas, é verdade, havia certo afastamento, rixa até, que acabou sendo quebrada numa noite, quando as diferentes tribos partilharam um místico cachimbo da paz na praia do Tombo.

Some-se a isso o rock and roll, em sua melhor fase – Woodstock acabara de ser lançado nos cinemas –, a influência marcante que a cena da contracultura internacional exerceu sobre todos, com o significativo lema "paz e amor", não obstante a ditadura que corria solta por aqui. Tudo isso coroado pelo lançamento do filme Endless Summer, do Bud Brown, que abriu a mente de todos para a infinidade de ondas que quebravam ao redor do planeta. Pronto: estava manipulado o fermento que fez crescer a utopia que marcou toda aquela geração.

Foi nesse contexto que conheci o Sidney Luiz Tenucci Júnior, já Sidão, com seu narigão desproporcional, ressaltado pelo branco do Hipoglós ou da pasta de Lassar, já que não havia protetor solar na época, e sua agitação inata – sempre em movimento, mexendo-se, querendo falar mais rápido do que lhe permitia seu aparelho fonético, o que às vezes comprometia sua dicção, tornando-o ininteligível. Era mesmo uma figura, estudava no tal do Liceu Eduardo Prado, que era um "colégio vocacional", conceito que jamais entendi muito bem, sei apenas que era um colégio em que não havia controle de horário, de presença, com sistema de avaliação bastante diferente dos ortodoxos.

A gente se conheceu no Guarujá, e ficamos amigos de cara, amizade que perdurou até o fim, com uma intimidade e liberdade impressionantes para dizer o que quer que fosse um ao outro. Desde cedo, com o surf, começaram os deslocamentos em busca das melhores ondas. Primeiro, no Guarujá mesmo, que só era acessível de balsa, e para onde o Sidão ia todos os fins de semana. Percorríamos a ilha toda, do Guaiúba ao Perequê. No início a pé, depois no carro dos amigos que já tinham carta e depois no seu próprio carro, um Opala. Mais tarde, essas aventuras estenderam-se para o litoral norte, precedidas de outra travessia de balsa, a de Bertioga, e caminhadas pelas quatro praias maiores até Boraceia.

O Guarujá daquela época era um lugar dos sonhos, todo mundo se conhecia, a areia das Pitangueiras era branca e "assobiava" quando se passava o pé. Além dos fins de semana, havia os verões intermináveis, com festas todas as noites, reuniões no centrinho, e o apartamento do Sidão, que sempre tinha gente hospedada, invariavelmente abrigava alguma festa, música, reunião, bate-papo.

O Sidão, necessário dizer, tinha uma baita de uma lábia com a mulherada, e só se dava bem, tocando seu violão, em especial dedilhando "Blackbird", dos Beatles. Foi o único cara que conheci que tinha uma cama-d’água no seu quarto, daquelas em que você deita e chacoalha. Para complementar o cenário do xaveco, na parede estavam reproduzidos os versos do Vinicius de Moraes para a música do Jobim, "A felicidade" – "A felicidade é como a gota/ De orvalho numa pétala de flor/ Brilha tranquila/ Depois de leve oscila/ E cai como uma lágrima de amor". Fala sério, o cara não era fraco!

As viagens mais distantes vieram com Imbituba, em Santa Catarina, para onde íamos na época em que estavam ampliando a estrada que ligava o porto à BR 101, e pegávamos altas esquerdas na praia da Vila, daquelas que iam do canto até o Jangadeiro, alimentados pelos PF’s de beira de estrada. Mas a viagem que marcou mesmo todos nós foi a primeira para o exterior.

Viajante incansável
Era início de 1972 e uma turma do Guarujá foi para sua primeira viagem internacional de surf, no Peru, com suas belas ondas, água gelada, habitantes hospitaleiros, ceviches, garotas – e lá estávamos o Sidão e eu.
Ficamos todos – éramos uns 11 – na Praia de El Silencio, em Punta Hermosa, sobre o cliff, sem carro, só nos movimentando a pé, sobre as areias quentes e debaixo do sol escaldante, surfando todos os dias nas águas geladas da corrente de Humbolt, confraternizando, investigando, instigando, descobrindo, com direito a uma semana de ondas perfeitas em Chicama, hospedados na pousada El Hombre. Foram momentos mágicos, inesquecíveis, que moldaram o Sidão para seu destino de viajante incansável, a primeira das inúmeras viagens pelo mundo e o primeiro dos 55 países que conheceu depois.

De volta à vida cotidiana, depois de um tempo flertou com a "indústria" do surf, fazendo pranchas, com a sugestiva marca Green room, arrecadando algum dinheiro. Com esse dinheiro, foi por terra, ou seja, de carro, carona mesmo, até a Califórnia, onde chegou a ficar hospedado na casa dos pais de um cara que havia conhecido na viagem, um dos desavisados que lhe dera carona, até ser expulso, já que, por conta própria, não sairia mesmo.

Outra característica marcante do Sidão era seu gosto pelos livros e por cinema. Sempre que o encontrava era envolvido por frases e pensamentos saídos de algum filme que ele acabara de assistir ou livro recém-lido. Era eclético, e na leitura gostava de vários escritores, de Lin Yutang a Carlos Castañeda, de Bukowski a Dostoiévski. Como muita gente daquela geração, leu e foi influenciado pelo Hermann Hesse, e uma das questões levantadas pelo Hesse em seus livros é justamente a contraposição entre ação e contemplação.

Sidão da OP
Acredito que o Sidão passou boa parte de sua vida dividido entre ação e contemplação, e passou lentamente, da primeira para a segunda. Ainda marcante para o Sidão foi a morte de sua mãe, exatamente na metade da década de 70, de câncer, quando ele passou a dormir ainda com maior frequência no meu quarto, no apartamento da Astúrias, já que não gostava de ficar só e costumava "tomar emprestada" minha mãe. Eu ia dormir e ele ficava conversando com ela até altas horas, contando suas desventuras amorosas, suas crises emocionais, coisas que deve ter feito com as diversas mães dos demais amigos.

Sidão cursou jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da USP, e no final da década de 70 meteu-se a produzir o que se chamava então de "cordinhas", hoje institucionalizadas pelo colonialismo cultural com o nome de leash, num mercado tupiniquim fechado, praticamente sem produtores de qualquer tipo de surfwear, mercado esse que estava sedento por aquilo, gerando um boom de demanda que logo o alçou à condição de grande empresário.

Tudo foi feito tomando emprestada uma logomarca já existente no mercado americano, a OP, Ocean Pacific, fato que pode parecer estranho ou mesmo censurável hoje, mas deve ser contextualizado para aquela época, em que a manobra era tida como normal, assim como não se usava cinto de segurança, nem capacete, e fumava-se dentro de aviões que, por sua vez, eram feitos em grande parte de material altamente inflamável. Enfim, outros tempos.

E o Sidão, quem diria, virou um megaempresário, ficou rico, patrocinou atletas, bancou campeonatos, investiu em pessoas e empreendimentos nos quais acreditava, comprou apartamento em São Paulo, casa de frente para o mar e todo o pacote. Também serviu de inspiração para muita gente, outros que trabalharam com ele abriram seus próprios negócios, fazendo questão de manter o vínculo das amizades antigas e mesmo ampliá-las, mas a sua posição pessoal em relação a tudo aquilo parecia um tanto quanto dúbia. Quando viajávamos, por exemplo, em vez de dizer que era empresário, sempre se apresentava como escritor.

E eu, cujo prazer era surfar mesmo, vivia questionando-o, dizendo que onde tanta gente enxergava que ele havia feito muito pelo esporte, eu via cada vez mais gente dentro d’água, mais crowd, o que estava tirando muito da graça da nossa brincadeira. Foi divertida essa nossa fase de debates. Se havia algo bem definido na nossa relação, era no sentido de que as opiniões não coincidiam: ele tinha as dele, eu as minhas, e assim foi sempre.

Mas a OP, de repente, encolheu e praticamente desapareceu com a mesma velocidade e intensidade com que havia surgido. E o Sidão, malgrado algumas tentativas de reativá-la, não teve êxito, confirmando a velha máxima de que é mais fácil iniciar uma marca do zero do que mantê-la, e mais fácil manter uma marca do que resgatá-la de momentos difíceis.

Apesar de perceber as dificuldades pelas quais ele passava, em especial financeiras, dificuldades que, diga-se de passagem –, e de forma coerente com toda nossa história –, ele jamais mencionou, eu nunca vislumbrei raiva, nem amargura, nem ressentimentos da parte dele. Pelo contrário, fui notando um Sidão cada vez mais introspectivo, sossegado, contemplativo, até quando acometido por um câncer de próstata enfrentou a cirurgia e o tratamento com garra.

Maldivas e paz interior
Em 1995 fizemos uma viagem maravilhosa para as Maldivas, quando passamos um bom tempo juntos, conversamos bastante, surfamos altas ondas. Quando entraram as monções e as ondas miaram, fizemos um curso de mergulho autônomo, descortinando-se diante de nossos olhos toda a maravilha subaquática daquele atol.

Nosso instrutor chamava-se Impti, que certamente serviu de inspiração para o personagem de mesmo nome do livro que Sidão escreveria, O surfista peregrino, com o qual acabou, finalmente, consolidando a profecia de que se tornaria um escritor. E a noite de despedida do hotel em que estávamos nas Maldivas foi talvez a mais emocionante de nossas vidas, com uma lua cheia enorme no céu e todo o hotel, funcionários e hóspedes, parando tudo e formando fila para se despedir.

Com tudo isso, o Sidão nunca parou de surfar nem de viajar, apesar de haver diminuído a intensidade com que surfava e, concomitantemente, aumentado intensamente o ritmo das viagens.

E que fique claro, o que mencionei como movimento contemplativo por parte do Sidão nunca limitou sua curiosidade incessante nem sua capacidade de relacionamento. Revelava-se, na verdade, em sua crescente tolerância e paciência com o entorno, e nos trabalhos que vinha desenvolvendo, escrevendo.

Continuamos nos encontrando esporadicamente, sempre com o mesmo espírito de troca de informações e opiniões, até a última vez em que o encontrei na praia em Maresias, eu saindo do mar, e ele reclamando de uma dor na lombar que não o deixava cair na água. Não muito depois recebi um telefonema dele dizendo que haviam diagnosticado um tumor na coluna, e que não era nada bom. Nada bom mesmo, uma luta que começara perdida, mas para a qual ele parecia ter se preparado e enfrentou com inacreditável calma e paz interior.

Pois bem. Hoje, o Sidão já não está mais aqui, não vou encontrá-lo na praia, nem numa reunião de final de ano, nem num cinema, sequer receber uma ligação dele, mas tive a chance de passar para visitá-lo e despedir-me no final, o que não é pouco. E de tudo, fazendo força para não cair na arapuca dos inúmeros lugares-comuns que sugam nossa inteligência nessas horas, tento resgatar a imagem verdadeira que carrego do Sidão, acreditando ser esse o movimento adequado, num esforço de relembrar dele como realmente era, pois se há algo que parece fazer sentido diante da morte é a afirmação de que uma pessoa só morre quando a última pessoa que pode se lembrar dela morre também. E, aqui, nesse ponto, a mesma luz que cega é a que possibilita enxergar. Já com saudade.

*Marcelo Fló é advogado, tem 60 anos e surfa desde os 13

 

Uma carta de Sidão 

Reproduzimos abaixo um post que velejador Beto Pandiani fez em suas redes, na ocasião da perda de Sidão. Beto recuperou uma carta que recebeu do amigo em 1994, que compartilhamos com vocês:

Sidão e eu fazemos aniversário quase juntos. No dia 5 de setembro eu, no dia 6 ele. Por causa desta vizinhança de nascimento comemoramos muitas vezes os nossos aniversários juntos. 

Houve um ano que fizemos uma grande festa no AeroAnta, em outros anos passamos em Maresias com o tradicional churrasco entre amigos. Mas teve um ano bem especial, quando ele foi para Manaus me encontrar para passarmos juntos uma semana a bordo do meu barco. Eu vinha de Miami por uma rota fluvial, e ele embarcou até Santarém. Passamos uma semana juntos e comemoramos nosso aniversário em pleno Rio Amazonas. Foi inesquecível para todos que estavam a bordo. Isso foi em 1994, mas antes dele chegar eu recebi esta carta que ele havia enviado uns meses antes. Vale o registro aqui com todos que amam o Sidão, pois nela pode-se senti-lo verdadeiramente. 

"Sampa, 2 de junho de 1994.

Caro Roberto.

My dear brother, repensando o quadro emocional de 1994, nitidamente falta uma peça fundamental (pelo menos a curta distância) . Cadê você Robertinho? Por onde tem navegado? Por onde tem sonhado? Como é sonhar o sonho vivendo nele? Quando vais estar em Manaus? Tenho tanta coisa para falar que acabo falando merda, algumas delas só pessoalmente.

O Brasil continua em dúvida se é realmente varonil, o mercado de confecção tá detonado com o calor ininterrupto até o final de maio, e eu estou tentando abrir no peito. Cada vez que consigo vem uma pequena ou uma grande porrada de algum lado. 

Tudo bem, você sabe como eu sou otimistamente paranoico-insistente, pois acordo todos os dias com um puta tesão de camelo, pronto para atravessar qualquer aridez com pouca água. Falando assim soa pior do que é, mas o que eu posso fazer, é aquela tendência genética italiana de dramatizar. A gente chora, se arrasta pelo chão, se rasga e no final acaba tudo bem. 2X1 para o Palmeiras, se é que você me entende. (Somos santistas). 

Não vou à noite faz um bom tempo, talvez por falta de estímulo da tua companhia, filosofando sobre os destinos do universo e dos meandros alucinados da alma humana, das consequências dos olhares, dos gestos, cheiros, e palavras das mulheres e de quem somos nós. Encapotados vagando pelo frio do inverno paulistano entre os gritinhos das drag-queens, entre o lixo amontoado, um sorriso de compreensão, mais de aceitação do mundo ao nosso redor e dentro da gente. (Graças a Deus).

Pô Roberto Pandiani, como se vê, seu amigo aqui continua procurando a loucura como um louco, talvez porque o trabalho não esta lhe dando tempo de tentar achar com mais calma. Já viu este filme antes? 

Fora isso tudo bem. Hahahahahaha. Desculpe se o chakra do peito vai invadindo as teclas, é aquele jeito impetuoso (primo do delírio) que já deu em tanta cagada e em tanta alegria. Pô, o brasilzão é foda compadre. Quem vê de fora consegue enxergar, mas quem tá aqui dentro acaba tendo a visão limitada pelo fog emocional, pela circunscrição específica do pequeno limite de atuação à que estamos atados. Solta, solta, explode coração!

As meninas estão ótimas, a Juliana esta quase com 12 anos, pré adolescente com pentelhices inerentes à fase, mas com uma inteligência, uma perspicácia e um carinho que vive me surpreendendo. A Isabella tem Deus e o Diabo em proporções bem equilibradas dentro de si, pois quando ela solta um ou outro é interessante e mais dramático de se ver e sentir. A Celina esta totalmente ocupada com a finalização do novo ap no Morumbi. Esta dançando em “ cabarets” seu lindo flamenco querido. Eu tenho a impressão de que eu vou morrer deixando um rastro de fogo...

Hoje é feriado em São Paulo, Corpus Christi? Finados? Batalha do Riachuelo? Entrega do espadim no cú do Collor, do Sarney? Estes bostas em geral que ajudaram e ajudam o Brasilzão a permanecer atolado com aquela sensação de que: “ pôrra, essa poderia estar sendo a grande foda, maravilhosa, homérica, inesquecível e inenarrável. 

O que esta segurando todo este nosso potencial? Que amarras temos que romper? Que grilhões destroçar? Sei lá, sei lá o caralho, sei que alguma coisa tem que se romper drasticamente neste país, na consciência deste povo para que haja evolução, para que saiamos desta estagnação milenar. A revolução? Impensável. De repente com este papo de índole pacífica do povo brasileiro, nós estamos há séculos segurando a grande gozada esporradora universal do Brasil. Salve Salve. E esta sensação da catarse libertadora possível é que faz com que as pessoas saiam do país mas nunca se desliguem; xinguem o pobre filho da puta, mas nunca deixem de amá-lo, porque pressentem que o país é do caralho, os infelizes que somos nós, tivemos a infelicidade de ter como dirigentes não são o Brasil e o Brasil somos nós. 

Ninguem vai querer se desligar do Brasil definitivamente, porque quando nós exercemos a nós mesmo, ninguém vai querer perder o Grande Carnaval. O grande orgasmo. O Grande Nós. Caralhos nos fodam Robertinho, esta porra vai prá frente, confia em mim.

Relendo esta carta fiquei imaginando que você deve estar em um momento totalmente diferente. Na paz, provavelmente com muito trabalho no barco, mas com todo o tempo do mar para pensar e sentir com calma a realidade e tocar as emoções praticamente com os dedos. E lá venho eu montado em outro tipo de furacão mais desequilibrado que cachorro em caminhão de mudança, tentando achar o prumo nesta tempestade que em parte eu sei que criei. Mas dá para sentir que eu tiro disso tudo um prazer quase mórbido, certo Roberto? 

Fico mentalizando o que eu vou escrever, que eu sou escritor e não pego no papel há meses, então quando tem um motivo legal como uma carta para você, a coisa sai com muita energia, mas sem direção, sem aquela calma dos monges tibetanos que o anjo da noite às vezes demostra e que também as vezes até tenho e quase não reconheço. Depois de uma bela massagem ou um belo mar com ondas do paraíso quebrando Deus para mim sem intermediários ou simplesmente baixa como um santo de paz. Ai sou mais eu, ou será um outro eu?

A melhor coisa que você pode fazer é sair, porque saindo você esta enganando o tempo. Cinco meses fora Betão e eu lhe digo; se voltasse hoje ia encontrar tudo absolutamente igual, com exceção de você mesmo. Então o tempo, este garoto safado e onipresente foi enganado, contornado, levou um drible. Eu acho que sempre senti isso, quando você é alvo móvel ele não te pega. Só a imprevisibilidade gera mais valia emocional, nos acrescenta alguma coisa antes de partirmos desta para o andar de cima, 18 andar; almas deslavadas, 45 andar; peruas redimidas, 56 andar; monges tibetanos com passagem pela NBA, 78 andar; surfistas e músicos que foram monges tibetanos massacrados pelo exército chinês na encarnação anterior. 100 andar você Robertinho, dando uma festa para os amigos...

Engraçado que tudo o que você faz parece irrelevante diante daquilo que você é. Numa certa vibração uma coisa é intimamente ligada à outra, mas desta dimensão da qual vos falo, não. São dissociadas, como dois irmãos siameses separados cirurgicamente e com um histórico cavernoso de incompatibilidade de gênios. 

Se me perguntam o que você é? A primeira resposta que me vem a cabeça é escritor e eu sou escritor, mas o que eu escrevo? A resposta é: Porra nenhuma. Mas o que me faz pensar que sou escritor? Não sei, eu me sinto escritor, não consigo me imaginar em pele mais confortável, que se adapte tão bem a mim mesmo. Preciso prática? Claro, mas esta parte é mais fácil...

Não é engraçado Robertinho, não me sentir a pessoa profissional pela qual todos reconhecem, com a qual realizei a maioria das coisas visíveis na minha vida? Por ai você vê como os desvios na rota podem ser longos, cabe a nós torna-los eternos. 

Sinto sua falta e espero que você esteja super bem na parada que se propôs. Se tiver tempo manda algo por escrito. 

Do coração do irmão que te ama.

Sidão"

 

 



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