ISTO É UMA VERGONHA

por Paulo Lima
Trip #244

’’É importante lembrar que, como quase todo sentimento humano, a vergonha tem inúmeras faces, sombreadas e iluminadas. ’’


Um garotinho de apenas 4 anos aparece completamente nu numa praia. Circula pela faixa de areia sem qualquer tipo de sentimento que o desvie de sua única e exclusiva intenção: explorar o território e interagir com o que se lhe apresentar diante do nariz. Subitamente se detém diante do salva-vidas. Observa atentamente o objeto em suas mãos. As Inspection, de 2002, faz parte da série Instructions on how to be politically incorrect (Instruções sobre como ser politicamente incorreto), do artista austríaco Erwin Wurm nadadeiras de borracha amarelas parecem símbolos misteriosos o suficiente para que a abordagem ao seu dono aconteça. Antes mesmo de perguntar o nome, dar bom-dia ou cumprir com qualquer outro tipo de ritual, o jovem vai direto ao ponto: “O que é isso?”. Diante do mais genuíno dos interesses, o salva-vidas se senta já completamente encantado pela inteireza e pela condição absolutamente desarmada do pequeno indivíduo. Enquanto se põe a explicar o funcionamento do artefato de propulsão aquática, vê o menino se acomodar confortavelmente apoiando seu peso sobre o ombro do interlocutor com quem acabara de travar contato, envolvendo-o com uma espécie de abraço enquanto escuta atentamente a explicação.

Enquanto isso, a mão direita do menino faz movimentos quase imperceptíveis de afago sobre os cabelos do soldado. A capacidade notável de ignorar o olhar crítico do outro e de ser invulnerável a julgamentos, convenções e travas em geral é muito provavelmente um dos aspectos mais fascinantes da primeira infância. A total ausência daquilo que chamamos de vergonha é possivelmente, assim como os olhos grandes e a evidente fragilidade física, um dos sábios mecanismos criados pela natureza para aguçar nos mais velhos o instinto de proteção que garantirá a sobrevivência à criança.

As maneiras como este sentimento complexo pode se manifestar ao longo da vida são o alvo desta edição da Trip. A vergonha do próprio corpo, por exemplo, daquilo que a indústria, nossos medos e a pressão social desenham como ideal e a distância, maior ou menor, entre esta projeção e a realidade, costumam gerar sentimentos perigosos. 

Provocar vergonha expondo a fragilidade ou atacando a dignidade de alguém é uma espécie de esporte praticado desde sempre pela humanidade que ganhou holofotes e estádios gigantescos com o advento das redes sociais e da tecnologia em geral. Seja nesses estádios ou nos operados pela Fifa,

a vergonha está por toda parte. Nos jornais que estampam gente prostrada no chão em hospitais públicos de todo o país, nas imagens de corpos esfaqueados jazendo no chão, nas cifras monumentais subtraídas por corruptos de todas as laias ou mesmo na nossa eterna incompetência administrativa que produz o permanente e devastador sobe e desce da economia nacional.

Mas é importante lembrar que, como quase todo sentimento humano, a vergonha tem inúmeras faces, sombreadas e iluminadas. Entre infinitos autores que abordaram e abordam o tema, é possível encontrar todas elas. Inclusive a que descreve a vergonha como a emoção que nos deixa saber que somos finitos. Nesse sentido, essa emoção complexa pode ser algo fundamental para a sobrevivência. 

PAULO LIMA, EDITOR 


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