O pior surdo é o que não quer ouvir

por Paulo Lima
Trip #238

Uma espécie de surdez ignorante teria tomado conta do Brasil?

É provável que William Ury seja a maior autoridade do mundo em conflitos humanos. Mas é certo também que esse título não é algo que ele almeje ou de que se orgulhe. Ao contrário, uma de suas qualidades mais marcantes e muito possivelmente o que o faz ser extremamente bem-sucedido ao interceder em embates tão cabeludos quanto as brigas entre russos e chechenos, israelenses e palestinos, ou entre o governo da Colômbia e as Farc é justamente sua humildade e um genuíno e absoluto controle do ego, que permite que ouça absurdos dos mais inacreditáveis, ofensas e despautérios sem que perca um milímetro sequer de sua serenidade. 

Ury, que já esteve nas Páginas Negras da Trip e volta agora à revista ao lado de dois outros mediadores de confl itos brasileiros, esteve no Brasil em setembro participando de um dos pré-eventos de aquecimento do prêmio Trip Transformadores. Numa conversa interessantíssima com o curador e designer de museus Marcello Dantas presenciada por cerca de 500 convidados, entre narrativas curiosíssimas sobre suas experiências inspiradoras e únicas, o antropólogo e professor de Harvard aceitou o desafio de responder a uma pergunta aparentemente insolúvel: o que afinal faz com que haja tanto desentendimento entre as pessoas?

Segundo ele, há algo em comum entre 99% dos casos de guerras, entreveros, tretas e desacordos que assolam a Terra todos os dias: não saber ouvir. 

Ao mergulhar de verdade nas questões, o que Ury descobria era que quase sempre aquilo que o lado A imaginava que fosse o que movia o lado B na direção belicista tinha pouco e às vezes nada a ver com o que de fato ia pela cabeça do grupo B. E a recíproca igualmente era sempre comprovada. Imagem de Parallaxis, livro do fotógrafo Vicente de Mello, que a editora Cosac Naify lança este mês.

Partindo das próprias inseguranças, de projeções idealizadas de uma realidade paralela, de enormes apegos e medos e ainda de imaginações fertilíssimas, ambos os lados vão construindo supostas verdades e quadros de tensão insuportáveis que difi cilmente se dissipam sem o uso da força e da capacidade de opressão destrutiva. 

Esta edição da Trip tem o objetivo de analisar o que nos moveu na direção de um racha poucas vezes visto na história da nação, temperado com doses enormes de ódio e de intolerância espalhados com força e eficiência ímpares através dos canais digitais. 

Nosso palpite é que a tese de Ury mais uma vez se comprova. Uma espécie de surdez ignorante teria tomado conta do Brasil a pretexto da eleição presidencial de 2014? É o que vamos tentar entender nas páginas que seguem.

Vale ouvir.

Paulo Lima, editor

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