Inferno são os outros

por Henrique Goldman
Trip #238

’Podem queimar a Amazônia e acabar com as baleias. Mas, por favor, façam isso rápido!”

Tô andando na Faria Lima, em São Paulo, ou tô no Rio, parado numa esquina do Leblon, quando um sujeito estranho para na calçada e diz alguma coisa, me olhando, mal-encarado. Tem uma construção do outro lado da rua e, como faz muito barulho, não consigo entender direito o que ele diz. Talvez esteja falando numa língua estrangeira. Logo percebo que não. Fala português mesmo, só que com um sotaque meio ridículo. Noto que no canto da boca do sujeito acumulou-se um pouco de saliva, formando uma gosminha branca, nojenta. Desde criança implico com esse tipo de gosminha. Mas o que mais irrita é a camiseta Lacoste vermelha por dentro da calça jeans, com cinto. Isso irrita demais. É roupa de síndico de um condomínio sofisticado de Londrina, condomínio com nome tipo Maison Piet Mondrian.

Pela expressão do rosto e pelos gestos do sujeito, percebo que ele desaprova alguma coisa. Ah! O idiota está reclamando porque não catei o cocô do meu cachorro na calçada. Fico cabisbaixo, boquiaberto, olho de soslaio para aquela cara. Verdade, não limpei o cocô do cachorro. Não tô nem aí. Mas quem é ele para chamar minha atenção, botando moral? Com toda certeza, o imbecil já subornou muito guarda, sonegou imposto e, na sua última viagem à Flórida, trouxe na mala pelo menos dois iPads sem declarar na alfândega. Os iPads estão lá no condomínio Maison Piet Mondrian! E o meu cachorro tem pedigree! Atravesso a rua sem ouvir.

De noite, jantar em casa. Saco! Com uma derradeira garfada, pego o último pedaço do bife à milanesa e junto a ele o pedaço de tomate que sobrou no prato. Sou do tipo que gosta de terminar as refeições com simetria. E daí? Não gostou? Me levanto para deitar no sofá e assistir ao jornal das 8, para esquecer do mundo. Mas já nas primeiras notícias do jornal percebo que o mundo tá acabando.

RONCO E CELULITE

Só para infernizar mais a minha vida que, como já deve ter dado para perceber, é uma bela de uma bosta, minha mulher começa a reclamar, dizendo que, como a empregada não fica mais para o jantar (e eu sei muito bem disso, já faz três meses que ela não vem, mas o salário continua o mesmo), eu poderia, só uma vez, só para variar, pelo menos ajudá-la a tirar os pratos da mesa de jantar em vez de me plantar na frente da TV. Aproveita para dizer que estou gordo e que, por isso, ronco de noite. Sim, está cientificamente provado que a gordura e o ronco estão, sim, relacionados. Além disso, ela aproveita o embalo para dizer que não sou capaz de impor minha autoridade com as filhas, que a tratam como escrava. Pior, como uma cachorra. Peraí, penso. Quem é ela para reclamar tanto de mim? Ela, que tem celulite e acorda com remela nos olhos. Ela, que não ganha nem a metade do dinheiro que eu ganho e gasta o dobro comprando porcaria. Aumento o volume da televisão até não conseguir mais ouvir ela bronqueando como uma papagaia velha enquanto leva os pratos para a cozinha. Quero que morra. Quero que morram todos. 

Sabe de uma coisa? Não me incomodo minimamente com o destino do mundo. Podem derreter o polo sul e o polo norte à vontade. Podem queimar a Amazônia inteira e acabar com todos os rinocerontes e baleias. Mas, por favor, façam isso rápido, sem encher mais o meu saco. Só quero saber de mim. Não, nem de mim direito eu quero saber.

*Henrique Goldman, 53, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles

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