Em busca da dita cuja

por Ronaldo Lemos
Trip #236

Procure no Spotify as músicas que contêm a palavra ”vagina”. As 15 primeiras dizem muito

Em 1967, o escritor francês Guy Debord, autor de A sociedade do espetáculo, expressou sua frustração com o surgimento de câmeras domésticas, capazes de fi lmar a vida cotidiana dos seus proprietários. Ao comentar um anúncio das velhas câmeras alemãs Emig, que tinham como slogan “Amo minha câmera porque amo viver: gravo os momentos da vida para revivê-los quando quiser”, ele dizia: “Isso evoca a petrifi cação da vida individual, que se converteu também em economia do espetáculo”.

Se para Guy Debord a perspectiva de as pessoas usarem essas primeiras câmeras para transformar suas vidas em espetáculo público era preocupante, é de se imaginar que ele ficaria hoje estarrecido com o Instagram. Afinal, poucas vezes uma rede social integrou-se de forma tão profunda ao espetáculo e projetou conexões tão fortes com o pressuposto surrealista que alimenta o tripé consumo, desejo e luxo.

O Instagram é a rede social mais conformista em ação hoje. Não é à toa que seu valor estimado supere alguns bons bilhões de dólares (mostrando que conformismo vale bom dinheiro). Se outras redes sociais de alguma forma contribuíram para debates políticos e até revoluções, o Instagram ao mesmo tempo alimenta-se e é alma mater de um realismo capitalista. Não por acaso até o presidente sírio Bashar al-Assad mantém um perfi l no Instagram, onde, em meio à guerra civil que assola seu país, tudo exala uma perturbadora normalidade (instagram.com/syrianpresidency).

Tive recentemente a oportunidade de conversar sobre esse e outros temas com Thomas Levin, professor da Universidade de Princeton que conheceu Guy Debord pessoalmente. Thomas chama a atenção para o aparente paradoxo dos vários fi lmes realizados por Guy Debord. Se ele odiava o cinema, enxergando-o como um dos elementos centrais da sociedade do espetáculo, por que então fazer filmes? A resposta é justamente a busca da subversão do meio. A frustração debordiana não era com o cinema em si, mas com a forma como o cinema acabou por se consolidar enquanto veículo do espetáculo. Os filmes feitos por Guy Debord são o avesso disso. São tentativas de construir outros significados para as imagens em movimento, subvertendo o cinema que conhecemos em prol de outras ideias e propósitos.

PLAYLIST

A situação com que nos deparamos hoje, com as ferramentas e redes sociais existentes na internet, leva a uma frustração parecida com a de Guy Debord com o cinema. São mídias poderosas, de enorme flexibilidade e escopo, mas nossa relação com elas segue o chamado “princípio bovino”: bastam cercas pequenas para controlar grandes rebanhos. Nada impede que o Instagram seja utilizado de forma completamente diferente da que prevalece hoje. Mas os rebanhos de usuários estão presos à imitação de um jeito específico, visto como correto, de usar a plataforma. Isso erradica ou marginaliza qualquer uso desviante.

Por isso, sempre que surge uma mídia nova, fica a obrigação de pensar nos usos “debordianos” daquela mídia, fugindo do entretenimento e do espetáculo e buscando novas ordens não aparentes do mundo. Como o tema da Trip deste mês é Vagina, fica uma pequena subversão midiática a partir do Spotify, para pesquisar a lista de todas as músicas disponíveis por lá que contêm a palavra “vagina”. O que esse playlist tem a dizer sobre o mundo e sobre o tema em si? Pense por você mesmo lendo a lista das 15 músicas e artistas com a palavra “vagina”, na ordem em que são geradas pelo aplicativo: 1. “Vagina” (The Tiger Lillies); 2. “Vagina” (Pig Vomit); 3. “Vagina Mine” (Puscifer); 4. “My Vagina” (NOFX); 5. “The Vagina Song” (Willam); 6. “Vagina Ice” (Bliss n Eso); 7. “Hey There Vagina”; 8. “Moist Vagina” (Nirvana); 9. “Blac Vagina Finda” (Onyx); 10. “Church of the Smiling Vagina” (Jamie Kilstein); 11. “Cum Baby Vagina Monster” (Jamie Kilstein); 12. “Vagina Says” (Hal Sparks); 13. “Penis in Vagina” (The Change); 14. “Vagina Dentata” (Tribulation); 15. “Giant Vagina” (Chastity Belt).

*Ronaldo Lemos, 38, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e apresenta o programa Navegador na Globonews. Seu Twitter é @lemos_ronaldo

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