por Carlos Primati
Trip #212

Para a primeira estrela pornô brasileira não havia tabu: homem, mulher ou animal

Para a primeira estrela pornô brasileira não havia tabu: homem, mulher, animal – valia tudo em nome da baguncinha

Duas moças, após uma transa lésbica, comentam na cama as preferências sexuais das amigas. “Conheço uma que não gosta nem de homem nem de mulher”, diz a primeira, “Ela só gosta mesmo é de cachorro.” A colega responde: “Mas que mau gosto!”. e emenda: “Me conta tudo!”.

Os cinco minutos seguintes formam um capítulo decisivo na história do cinema popular brasileiro: sem demonstrar nenhum constrangimento, uma garota faz sexo com um cão pastor-alemão, no momento mais célebre do filme 24 horas de sexo explícito. O cachorro começa apenas lambendo as partes íntimas da moça, mas logo se empolga e passa a fazer os movimentos frenéticos de um coito animal, tentando a todo custo penetrar a parceira. A cena se tornou notória por introduzir a zoofilia no cinema nacional, modalidade que nos anos seguintes viraria padrão nos pornôs da Boca do Lixo, em que cavalos, jegues e jumentos roubavam as cenas dos garanhões humanos.

A protagonista da façanha é Vânia Bonier, uma catarinense na época com 20 e poucos anos e que, três anos antes, já havia entrado para a história como a primeira estrela pornô brasileira, quando protagonizou Coisas eróticas, dirigido por Raffaele Rossi, no qual fazia estalar um chicote durante uma suruba sadomasoquista.

Vânia escandalizou a família quando encarou o duro desafio de fazer o filme que arrombaria as portas da censura para introduzir o sexo explícito nas telas nacionais. A pequenina destemida forçou ainda mais a barra ao se sujeitar a fazer sexo com um cachorro.

Lançado em maio de 1985, o escandaloso 24 horas de sexo explícito tem a marca de seu diretor, José Mojica Marins, mais conhecido pelos filmes de horror com seu personagem Zé do Caixão, nos anos 60 e 70. “Que mau gosto! Me conta tudo!”: repúdio e fascínio – Mojica lida à perfeição com esse paradoxo moral, apelando para os instintos mais baixos de seu público.

O diretor estava descontente por ter que aderir ao pornô para sobreviver profissionalmente (como muitos de seus colegas na época), então decidiu debochar do gênero, criar um filme de repúdio à onda de sexo explícito que estava matando o cinema nacional.

O fotógrafo e operador de câmera do filme, Virgílio Roveda, concorda: “Era uma forma de esculhambação, para bagunçar com esse cenário criado por exigência dos exibidores, e não dos cineastas”. O resultado é um coquetel indigesto que não se furta sequer de apelar aos medos relacionados ao sexo: o pavor de brochar, de pegar gonorreia, de ser humilhado pelas mulheres ou mesmo de ser forçado a uma transa gay.

A ala feminina tampouco ajuda e o filme faz questão de enfatizar essa feiura nos próprios diálogos – “De que cemitério você desenterrou essas múmias? Parece que trouxe lá da figuração do Zé do Caixão!”, reclama um dos rapazes, e o colega retruca: “Você queria o quê? A Xuxa, a Sônia Braga…?”.

Não; nada de Xuxa ou Sônia Braga no elenco, mas Vânia não aceita quando a chamam de feia: “Eu era linda; eu sou linda! É ridículo isso de que sou a ‘rainha das feias’!”. Porém, o que menos interessava ao diretor era formosura feminina, o que importava – o que sempre importou em seu cinema – era chocar e inovar.

A ideia de meter zoofilia no filme partiu do próprio Mojica, e Vânia não vacilou por nem um instante quando foi convocada para a ação. A pegação entre a moça e Jack (o pastor-alemão) soa coerente em meio ao caos planejado de 24 horas, porém, ao contrário do que a maioria das pessoas parece acreditar, a infame transa nunca teve intenção de chegar às vias de fato.

“Foi tudo simulado, em nenhum momento há penetração, foi tudo planejado assim”, explica Roveda, revelando que foi mais fácil de filmar a cena do que imaginavam a princípio. Vânia corrobora a afirmação e diz que isso constava no contrato, “inclusive havia um veterinário a postos para qualquer emergência”.

Mesmo assim, o pesquisador e historiador de cinema brasileiro Alexandre Aldo Neves contesta o ineditismo da cena. Dono de um acervo com 530 filmes e 250 cartazes originais de obras da Boca do Lixo, ele aponta uma cena entre Paula Sanches e um cachorro anônimo no filme Variações do sexo explícito, de Alfredo Sternheim, lançado sete meses antes de 24 horas. Na cena em questão, o animal apenas lambe as partes íntimas da moça. Neves é um dos vários pesquisadores da nova geração que se dedica a resgatar o cinema popular da Boca, argumentando que nesses filmes “o erotismo serve apenas como chamariz, suas tramas são o reflexo da nossa sociedade”.

O interesse pelo tema é compartilhado pelos pesquisadores Denise Godinho e Hugo Moura, responsáveis pela realização do documentário A primeira vez do cinema brasileiro, uma detalhada reportagem que desvenda os bastidores do filme Coisas eróticas e que tem Vânia Bonier como umas das personagens centrais. “Foi um cinema que rompeu o tabu do sexo e mostrou aquilo que todos faziam, mas com personagens brasileiros”, defende Denise, enquanto Hugo enxerga um movimento de resistência no ato: “Talvez mais bacana ainda seja mostrar a afronta dos produtores à censura do regime militar”. O documentário estreia em julho na cidade de São Paulo.

A dupla também escreveu um livro sobre a realização do primeiro filme pornográfico brasileiro, editado pela Panda Books.

Vânia é uma redescoberta dessa nova geração que transforma essa matéria-prima não apenas um objeto de culto, mas também de estudo. O documentarista Fábio Vellozzo, autor de uma série sobre a Boca do Lixo, argumenta: “O pornô deu emprego para técnicos e atores cujos nomes foram varridos para debaixo do tapete da história do cinema brasileiro. Já está na hora de contarmos a história de suas vidas”. A própria Vânia reforça o recado: “Os artistas deviam ser tratados com mais carinho, e não vistos como marginais, como naquela época”.

Nos últimos anos, os filmes produzidos na Boca do Lixo, inclusive a fase de sexo explícito, têm atraído a atenção de acadêmicos e cinéfilos em geral, interessados em conhecer mais a fundo e compreender essa peculiar maneira de fazer cinema.

O jornalista Matheus Trunk, colaborador da revista eletrônica Zingu!, define algumas de nossas estrelas pornôs: “Sandra Morelli é lembrada pelos filmes equinos; Débora Muniz, pela garra e persistência; Márcia Ferro, pela veia cômica mesmo nos momentos mais complicados; Vânia Bonier chamou a atenção por fazer qualquer tipo de filme, sem restrição. Topava qualquer parada e isso a diferenciava de suas contemporâneas”.

No entanto, o assunto está longe de ser um consenso. A ala dos detratores é reforçada pelos próprios personagens responsáveis pelo período pornô, que dominou quase toda a década de 80. Virgílio Roveda vai direto ao ponto: “Era deprimente, algo que não prestava, eu só fazia mesmo pelo cachê”. Esse sentimento não era estranho aos cineastas da Boca naquela época.

Francisco Cavalcanti, diretor especializado em filmes policiais e de suspense, lançou no início de 1985 o filme O filho do sexo explícito, um pornô que criticava o próprio gênero, colocando em cena Mojica e o próprio Cavalcanti debatendo a decadência do mercado cinematográfico. Atualmente, o cineasta tenta relançar seus filmes dos anos 80 retirando os enxertos de sexo explícito colocados à sua revelia pelos exibidores.

Quem não se importa nem um pouco com isso é Vânia Bonier. Dona de um corpo suficientemente escultural para ser modelo de nu no curso de belas artes da USP no começo dos anos 1980, ela teve uma breve passagem pelo cinema, aparecendo em apenas nove filmes, mas o bastante para ser alçada à categoria de ícone mais de 25 anos depois da aposentadoria das telas. 24 horas de sexo explícito foi seu auge e sua despedida.  Hoje, passando dos 50 anos, esbanja vivacidade e disposição para alguém que teve muitos altos e baixos na vida.

Em meio a frases cortadas e repletas de gírias dos anos 80 (“às vezes a cabeça dá um tilt!”), ela conta ter sido uma empresária bem-sucedida, dona de uma casa de massagem e de uma boate que estava sempre lotada (“O Maluf e o Delfim Neto não saíam de lá”), mas também teve momentos trágicos, como uma internação por motivo de doença que teria durado seis anos, chegando a tentar o suicídio e ser obrigada a morar na rua por algum tempo. Ganhou muito, perdeu tudo, chegou ao fundo do poço, mas conseguiu se reerguer.

O período atual é de um indisfarçável entusiasmo com o sucesso que faz pelas redes sociais. Vânia Bonier – na verdade, Vanilda Ana Plácido – pretende aproveitar a nova exposição na mídia para investir na carreira política. Nos últimos dez anos já se candidatou duas vezes a deputada estadual por São Paulo e afirma que vai insistir no objetivo em 2012. Sua plataforma política? Cuidar de animais abandonados e dar de comer aos cães de rua. Obviamente. 

*Este artigo é dedicado à memória de Carlos Reichenbach Filho, um dos maiores pensadores do cinema brasileiro, falecido um dia após lhe ter sido enviada uma mensagem, nunca respondida, pedindo seu depoimento sobre o tema desta reportagem.

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