A pior escola do Brasil?

por Karla Monteiro
Trip #203

Com 600 alunos indígenas, a Escola Estadual Pedro I ficou em último lugar no Enem

Fomos até o Alto Solimões, perto da fronteira com a Colômbia, conhecer a Escola Estadual Pedro I. Com 600 alunos indígenas, a escola ficou em último lugar no Enem porque, entre os estudantes, português é a segunda língua – e às vezes até a terceira –, atrás do ticuna e o espanhol. Um exemplo claro de como é complicado ter um mesmo currículo e um mesmo sistema de avaliação para o Brasil inteiro

Assim caminha a juventude ticuna... São índios. Mas não adoram o Sol, a Lua, as estrelas, os animais, as árvores. Praticam, sim, com afinco, a religião batista, imposta por um missionário americano, o pastor Eduardo – provavelmente, Edward – que passou por ali, pelo Alto Solimões, a região mais isolada da Amazônia, no amanhecer dos anos 60. São brasileiros, amazonenses, porém, não assistem à novela das oito nem ouvem sertanejo universitário. Eles se ligam na TV colombiana e escutam música importada do país vizinho, que ecoa estrondosa dos casebres de madeira. Praticamente de todos ao mesmo tempo. O único sinal de que devem passear de vez em quando pela Globo é o penteado do Neymar enfeitando as cabeleiras escorridas e negras. E o time local: o Flamengo. Tanto meninas quanto meninos são fanáticos por futebol. Toda tarde tem pelada na quadra da escola. Não falam português fluentemente. As crianças nem sequer entendem. A língua dos bate-papos animados é o ticuna. Anasalado e sonoro. No entanto, são obrigados a aprender matemática, química, física, história, geografia etc. na língua pátria. Uma situação insólita, diga-se. Na língua que não dominam, o português, os jovens precisam ler e escrever – e prestar exames. E, na língua que dominam, o ticuna, também encontram limitações na leitura e na escrita, por tratar-se de uma língua de tradição oral. Assim caminha a juventude ticuna: soterrada numa salada de identidades. Perguntados sobre o que querem da vida, eles respondem que querem o mesmo que a maioria dos jovens: entrar na universidade.

– Meus pais falam pouco português. Estudaram pouco. O Enem difícil para mim. Eu não sabia entender. Não compreendia questões. Eu acho que se a prova fosse em ticuna, a gente muito melhor. Meu sonho é fazer medicina – diz Moacir da Silva, 25 anos, olhos colados no chão, português vacilante.

– Maior dificuldade matemática, química e história. Muito diferente da escola. A linguagem muito complicada também. Tinha que ter prova em ticuna. Facilitar muito porque a gente entende melhor, mesmo existindo pouco material escrito em ticuna. Não desisto. Eu quero fazer secretariado nível superior – comenta Rosilene Miguel Batalha, 23 anos, com um bebezinho de olhos brilhantes no colo. Ela também prestou o Enem em 2009.

– Quero estudar longe, em Manaus. Quero fazer informática. Estou fazendo curso livre em Santo Antônio. Todo sábado pego a canoa e vou. Fiz o Enem. Não consegui. Não somos burros não. Só não falamos a língua direito porque português não é a nossa língua – emenda Valdemir Crispim, 19 anos, também inscrito no Enem de 2009.

Dos 22 professores da escola, só oito são brancos. “não querem perder a Língua,aí fica difícil aprender melhor o português”

Em 2009, a Escola Estadual Pedro I, na aldeia Betânia, onde vivem 5 mil ticunas (estima-se que existam 32 mil ticunas vivendo no Alto Solimões, entre a Amazônia brasileira, colombiana e peruana), ficou na rabeira do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio. O colégio, uma construção sólida e espaçosa, semelhante a qualquer prédio de escola pública, frequentado por 600 jovens representantes da etnia, ostentou o último lugar, com média geral de 249, 25 pontos. A média na redação foi a menor: 40 pontos. E a maior, matemática, com 410, 49 pontos. O gestor do Pedro I é um índio miúdo, semblante sério, vestido distintamente, com calça social e camiseta da Seduc, a Secretaria de Estado de Educação do Amazonas. Com pós-graduação em pedagogia, ele garante: indo bem ou mal no Enem, a ordem nos corredores do seu reduto é perseverar. “A dificuldade dos nossos alunos é a língua. Mas temos quatro alunos que conseguiram a média do Enem e estão na faculdade em Tabatinga. Do meu ponto de vista, o exame é justo no sentido de testar a produção de conhecimento. Mas o Enem não reflete nem respeita a cultura amazônica. As escolas indígenas participam com toda coragem e boa vontade”, diz, também vacilando no português e desviando o olhar. “Queremos que os nossos jovens vão para a universidade porque a aldeia precisando de profissionais. Com toda desigualdade, bom ter Enem. Só pedimos que considere a nossa cultura. Temos 20 alunos inscritos no Enem de 2011. Em 2009, foram 58 e 40 fizeram a prova.”

Sem interesse no ENEM

Segundo a representante na região da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas, Suzete do Socorro, uma senhora atarracada e simpática, não há nenhum projeto ou discussão em curso sobre mudanças nas regras do Enem. A ordem é incrementar o português nas escolas indígenas. Desde o fatídico 2009, o ano do fracasso oficial, ela vem tentando. Ano passado a professora Adriele Fabiola, formada em letras pela Universidade Estadual do Amazonas, foi enviada à aldeia para um curso de quatro meses. As duas são categóricas no discurso: a situação é complicada. “Eles não querem professores brancos. Querem professores indígenas. Temos 22 professores na escola, só oito são brancos. Por um lado, têm razão. Não querem perder a língua. Mas aí fica muito difícil o aprimoramento do português, pois falam em ticuna na sala de aula”, comenta Suzete. “Na verdade, não se importam com o Enem. Fazem questão de se inscrever porque se conseguirem o mínimo de pontos estão dentro da UEA [Universidade Estadual do Amazonas] pelo sistema de cotas. O desejo deles é formar cada vez mais jovens para atuarem dentro da comunidade.” Adriele completa: “Trabalhei com o ensino fundamental e médio na aldeia. A língua portuguesa é uma segunda língua para eles. Não conseguem compreender a gramática, o vocabulário é limitado. Percebi que não adiantava dar uma aula clássica. Era preciso usar o entorno. Por exemplo: íamos para o jogo de futebol, e, na volta, eles tinham que narrar o jogo. Gostam de contar histórias. São bons em narrativas. Mas têm muita vergonha de falar e escrever em português. Eu não acho justo que tenham que concorrer com quem mora no Rio ou em São Paulo. O isolamento cultural é gigante”.

Cocaína, igreja e milícia

O isolamento é algo que não se discute. A aldeia Betânia localiza-se onde o vento faz a curva. Para chegar lá, navegar é preciso. Saindo de Manaus, há duas maneiras. As lanchas rápidas levam entre 20 e 30 horas para atingir Santo Antônio do Içá, a cidadela ribeirinha mais próxima de Betânia. Viaja-se em bancos não reclináveis. Comparando os assentos, é quase como passar uma noite e um dia aboletado num coletivo urbano. O serviço de bordo é eficiente, animado e musical: arroz, macarrão, farinha, Coca-Cola e sertanejo universitário. O preço do ticket, alto: R$ 390, uma perna. A outra maneira de viajar é mais romântica: os barcos chamados de recreio, com suas redes dependuradas ao vento. A viagem dura, porém, cinco dias e cinco noites. O preço: R$ 200 de rede e R$ 600 de camarote. Na ida, nós demos sorte. Ou nosso azar virou sorte. Por conta do atraso aéreo no voo Rio-Brasília-Manaus, perdemos a lancha rápida. Como castanheiras e mognos, fomos salvas pelo Greenpeace, que nos conseguiu vaga num “aeromédico”. A bordo, um médico gaúcho e uma enfermeira cabocla que se encaminhavam para o salvamento de um índio que sangrava por 29 perfurações. Vigia de uma balsa que trafega no Alto Solimões, ele havia sido atacado por piratas. Sim, piratas existem. Na volta, encaramos o rio. A paisagem compensa tudo. De Santo Antônio do Içá até a aldeia, porém, ainda tem chão. Ou água. Aluga-se uma voadeira por R$ 200 a viagem. O caminho é o seguinte: desce o Solimões por meia hora; pega um atalho pelo rio Paraná de São Félix; penetra no rio Içá. E, mais meia hora depois, avista-se a aldeia Betânia, num recanto paradisíaco e dominado pelos traficantes de cocaína da Colômbia. Subindo o Içá mais quatro horas, já é território colombiano. De acordo com os índios, o rio tornou-se rota alternativa da droga.

Nossa primeira impressão da aldeia Betânia foi tensa. Na margem do Içá, onde atracam as voadeiras, uma cena emblemática: um índio jovem, de menos de 30 anos, com o rosto sangrando, algemado, cercado por vários outros índios trajando camiseta preta com a sigla SPI (Serviço de Polícia Indígena). Em volta, dezenas de curiosos, muitas crianças. Ali começamos a descobrir um lugar – de fato – à parte. A aldeia começou a se formar em 1961, pelas mãos do pastor Eduardo, o tal missionário americano da igreja Batista. O pastor Modestino Domingos da Silva, um dos cinco pastores indígenas que hoje zelam pela alma dos ticunas, tem a história na ponta da língua. “Eu tinha 12 anos. Nessa época, os ticunas viviam espalhados. O pastor Eduardo chegou e foi juntando a gente. No primeiro acampamento éramos só 60. A primeira construção foi a igreja. Em 1962, houve o primeiro batismo. Daí para frente, veio ticuna de tudo quanto é lado”, conta ele. “Os ticunas viviam enfrentando várias guerras, morrendo. Hoje somos 5 mil moradores e 90% é batista. Nossa comunidade é organizada e ordeira.”

O cacique segue as leis da igreja. É proibido fumar, beber, praticar rituais indígenas com plantas, usar brincos... Para botar ordem, os ticunas criaram a própria polícia, uma espécie de milícia formada por voluntários. O delegado Domingos Francelino Pereira é uma grande figura local. Ao lado do preso do dia, acusado de abuso de álcool, ele levantou a camiseta para nos mostrar dois cortes de terçado no peito, conquistados na luta para prender o jovem beberrão. “Antes tinha violência de todo tipo, até estupro. Um dia descobrimos uma plantação de cocaína. Os traficantes estavam obrigando nossos jovens a plantar. Foi aí que criamos a nossa polícia. São 120 voluntários”, explica o “delegado”. “Ainda temos problema de alcoolismo. É ruim para os povos indígenas cervejas, essas coisas. Índio bebe e sai gritando, ameaçando vizinho. E também tem cocaína. Os traficantes vendem papeletas aqui, na porta. Quando formamos a nossa polícia, todo mundo falou mal na televisão. Chamaram a gente de milícia. Nós não somos milícia, não. Somos filhos da terra e queremos proteger os nossos filhos. Quem vai proteger?” Na delegacia, Seu Domingos mantém até um pau de arara. “Não é violência. É pra corrigir”, garante.

Adentrando a aldeia Betânia, descobre-se um povoado simpático, limpo, organizado, ordeiro, como bem falou o pastor Modestino. As ruelas são calçadas de cimento. Os casebres, feitos de madeira, caprichados e aconchegantes. Por todo lado, há árvores e flores para enfeitar. A Escola Estadual Pedro I é o prédio mais imponente do vilarejo, fica na parte alta da aldeia. No nosso primeiro dia na Betânia, era feriado pela morte do pastor Jordão, outro americano que andou por ali. No colégio encontramos apenas um professor, de geografia, o Saturnino Jesuíno, um índio magrelo e falante. Ele conseguiu concluir o magistério graças a uma instituição localizada em Benjamin Constant, na Tríplice Fronteira, chamada Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues (OGPTB). Trata-se de uma associação criada em 1994, reconhecida pelo MEC, que forma e congrega mais de 400 professores indígenas que atuam em escolas das aldeias ticuna do Alto Solimões. A OGPTB organizou um dicionário ticuna e está traduzindo livros didáticos para o idioma indígena. “Fiquei cinco anos estudando lá. E consegui fazer o curso superior de magistério. O que nós defendemos é o ensino interdisciplinar, que mistura o saber convencional com o saber cultural”, diz Saturnino, um dos poucos fluentes em português na Betânia. “Há dois ou três anos, todos os professores eram de fora da aldeia. A OGPTB foi formando professores indígenas e o quadro mudou. Nossa escola é muito boa. Tem um ponto de internet. Há dois anos, temos eletricidade. Nosso problema é a língua. De Tefé a Tabatinga, predomina a etnia ticuna. Eu acho que justifica lutar por uma universidade ticuna. A maioria dos índios perdeu a língua. Nós não.”

TV e pavio curto

Na manhã seguinte, as ruelas de Betânia amanheceram coloridas de estudantes. Os miúdos indo para as duas escolas municipais de ensino fundamental. E os adolescentes, para o Pedro I. Calças jeans enfeitadas, cabelos incrementados, assim caminha a juventude ticuna: calçada com tênis da moda. O dia era de teste, simulado do Enem. E o dia também era de ensaio do desfile de 7 de Setembro. Ou seja, dia movimentado na aldeia. No Pedro I, há duas turmas inseridas no Ensino Médio Mediado por Tecnologia, um programa do Governo Estadual. Os alunos assistem às aulas na TV, que são gravadas em Manaus e enviadas via satélite. O professor eletrônico não faz sucesso. “Não consigo entender e não consigo copiar da tela. É muito rápido. Falo pouco português. Mas quero ser médica”, diz Laíde Alexandre Batalha, uma bela índia de 20 anos. “É interessante, mas é rápido demais. Eu assisto às aulas no computador e depois peço ao professor para me explicar tudo de novo”, completa Loila Carvalho Crispin, 25 anos, que precisou de tradutor para dar entrevista.

A manhã animada terminou com uma rodada generosa de bodó, um peixe típico da região do Alto Solimões. Assado na brasa, com farinha e pimenta-verde. A fartura era fruto do suor do dia anterior. O gestor da escola, Fanito, levou as oito professoras brancas para pescar. Elas moram na “casa dos professores” e, longe da vista dos colegas indígenas, reclamam o tempo inteiro da falta de estrutura da escola e de boa vontade dos ticunas com o português. “Sinto falta de livros, mapas, imagens, recursos visuais. Não tem nada. Meu único recurso é falar para uma plateia que não me entende”, diz uma. “Eles leem com tanta dificuldade que demoram um ano para ler um livro. E temos que ir com calma, porque os alunos se irritam. A comunicação é difícil. Índio tem pavio curto”, comenta outra. “Querem só aula em ticuna. Mas não existe material didático em ticuna. Uma loucura isso aqui. A gente fica batendo na tecla de que o português tem que ser a língua falada na escola. Mas eles se ofendem, acham que estamos desmerecendo a língua deles”, rosna uma terceira. No dia a dia, porém, todos se entendem, principalmente em torno de um banquete de bodó. “Levei elas para pescar porque estou criando um regulamento. Os professores indígenas têm que falar pelo menos um pouco de português na sala de aula. E os não indígenas precisam saber um pouco de cultura e da língua ticuna”, encerra Fanito.

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