Um barquinho e um violão

por Teco Padaratz
Trip #194

Teco Padaratz fala da ligação entre surf e música, que exigem envolvimento mental e físico

Teco Padaratz fala da ligação artística entre surf e música, que exigem o mesmo tipo de envolvimento mental e físico para funcionar em total harmonia - e de como realizou um sonho ao juntar artistas e atletas em uma surf-music-trip para Mentawaii

 primeira vez que pensei na conexão entre música e surf foi quando eu tinha 17 anos, morava nos EUA e conheci Donavon Frankenreiter. Ele surfava no circuito americano amador (NSSA) comigo, tinha um estilo de surf inconfundível — e uma atitude ainda mais inconfundível. Cabeludo, com roupas detonadas e muito atencioso, estava sempre com um violão. E, entre um dia e outro de baterias, arranhava acordes campeonatos afora. Quando voltei da Califórnia, comecei a carreira de surfista profissional e não vi mais Donavon. Mas percebi que ele não estava sozinho naquela de carregar a viola pra todo canto no mundo do surf. Mais do que isso, a imagem cabeluda que eu tinha dessa íntima ligação entre surf e música mudou com a entrada em cena do mais compenetrado de todos os competidores do circuito mundial, Tom Curren. Ele quebrava tudo (e ainda quebra) nas cordas. Dá pra ver que tem a mesma intimidade e irreverência com elas do que com sua prancha no mar.

 

Falando de minha experiência pessoal, mergulhei de cabeça no aprendizado de bateria. Começou no dia do meu casamento, quando me arrisquei na banda do meu amigo que se apresentava no palco. Eu comecei a perceber ali que tocar era tão bom quanto surfar. A frase soa forte para quem passou a vida sobre as ondas, mas, se você traçar um paralelo entre as duas artes, percebe a ligação. Ambas necessitam do mesmo envolvimento mental e físico em total harmonia para funcionar. Ambas são conduzidas em cima de fenômenos naturais que, inclusive, têm o mesmo nome: ondas (sonoras ou do mar). Imagine uma partitura musical. Se você traçar com um lápis uma linha em cima das notas e substituir aquela partitura por uma onda do mar de fundo, vai ver que o traçado é igual. É como se um fosse feito pro outro.

Rock´n Swell
E foi através dessa íntima ligação entre a música e o surf que pude fazer muitas amizades, começando pela família Ciampolini – os irmãos Fábio, Sérgio, Marcos, Cláudio e Ary Junior –, que me ensinaram os primeiros passos na música. Fiz sessions de som com eles pensando em surf. E depois ia pra sessions de surf pensando em música. Montamos então a Surf Explícito, banda com os irmãos Cláudio, Marcos e Ary Junior, além do surfista Duiliam Sodré. A bandeira da surf music começava ali pra mim. E, desde então, alimenta minha vida.

Outras pessoas foram importantes para este casamento de universos. É o caso de Armandinho. Nunca vi cara mais fissurado por surf. Passa o dia inteiro mexendo em pranchas. “Você tem que cantar como dropa ondas. Quanto maior o show, maior a onda”, ele dizia. Também não posso deixar de mencionar o carioca meio uruguaio Chris Oyens, que montou o projeto El Niño comigo e me estimulou a trocar a batera pelos vocais.

 


Sempre que aparece na roda o assunto surf music, os amigos mencionam cantores e bandas gringas como Ben Harper, Jack Johnson e Australian Crawl. Aí me vem uma sensação de falta de identidade, já que cresci escutando Led Zepellin, Pink Floyd, Dire Straits e também muito Titãs, Paralamas, Legião Urbana e Blitz, que era o símbolo da tribo da praia nos anos 80. Por que o pessoal se lembra muito mais dos gringos? O surf brasileiro nunca levantou a bandeira em nome da música brasileira.

Ondas, sashimi e sorrisos

Foi então, com esse espírito musical, que armei uma surf and music trip para Mentawaii, na Indonésia. Embarcaram, além de Moriel e Armandinho, caras como Guga Arruda e seus tubos; Marcão Ciampolini com seu slide de colo e ukelelê; Cláudio Ciampolini com seu baixo acústico; Jorge Schelenberger, capitão da aeronáutica e gaiteiro de primeira e Cláudio Diel, o surf repórter da barca. Fecharam a trupe o advogado Marcelo Freitas, o surfista Alex Miranda e o fotógrafo Anselmo Venansi.

Foi aquela viagem, com muitas ondas, inclusive descobrindo novos picos de surf nas Mentawaii, e curtindo entre amigos novos e antigos, aprendendo através da convivência a bordo do Freedom III, o barco mais alucinante que já peguei nas cinco trips que já fiz para este lugar. Na embarcação, além do conforto absoluto, tivemos a mágica companhia do Capitão Lee Clarke, um personagem à parte. O figura praticava ioga ao som de Rage Against the Machine e treinava boxe com outro tripulante no convés. Ele nos colocou nas melhores ondas possíveis, ancorou nos lugares mais lindos e, de quebra, ainda trazia peixes do fundo do mar, que rendiam maravilhosos sashimis.

 

 

Outro cara ímpar da tripulação era nosso chefe de cozinha, Christian Matthew Love, das Ilhas Channels (Inglaterra), que nos ofereceu uma degustação internacional de alta gastronomia, sem repetir um prato sequer durante onze dias. Sem brincadeira, foi de carneiro assado com molho de manga a sopa tailandesa de frutos do mar, passando, claro, pelos sashimis feitos com os peixes capturados pelo capitão. O que mais poderíamos querer depois de voltar ao barco, molhados e exaustos depois de surfar por quatro horas?! Completava a tripulação ainda uma equipe de locais, como Andy, Ayan, David (o massagista oficial da turma), Doni e Bong, que fotografou tudo que aconteceu na viagem, sempre sorrindo. Aliás, eita povinho simpático que sorri pros outros!

Nesta matéria que você está acabando de ler consegui realizar um sonho: juntei meus melhores amigos do esporte e da música para surfar no lugar que mais amo no mundo. Surfamos altas ondas e tocamos madrugadas adentro no meio do mar, como se o mundo fora dali nada significasse. O mantra que tomou conta de toda trip, desde a formação da barca, era simples: “surf all day and play all night”.

 

Antes do tsunami

Poucos meses depois da surf & music trip de Teco e sua trupe, uma onda indesejada quebrou forte nas ilhas Mentawaii. Um terremoto de 7,7 graus na escala Richter gerou um tsunami formado por ondas de até 3 m de altura, deixando pelo menos dez aldeias destruídas em seu percurso. Até o momento de fechamento desta edição, o total de mortos já chegava a 343. Outras 400 pessoas estavam desaparecidas e mais de 20 mil desalojadas. Os moradores das ilhas Mentawaii não tiveram tempo de fazer nada, já que o sistema de alarmes criado após o grande tsunami de 2004 não estava funcionando por falta de manutenção. A força das águas foi tão grande que arrancou o Freedom III, catamarã de 22 m de comprimento em que nossos surfistas músicos embarcaram, de onde ele estava atracado e jogou-o contra outro barco. Ambos explodiram, mas todos os tripulantes conseguiram escapar a tempo com apenas alguns arranhões.

Agradecimento Surf Travel Co. www.surftravel.com.br

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