Sucessão de erros

por Paulo Lima
Trip #186

A imperfeição é o nosso assunto predileto; é também estilo e o tema da edição 186 da Trip

Dizer que aprendemos com nossos erros é um lugar-comum inominável. E, no nosso caso, talvez seja até uma enorme redundância. Mais certo seria dizer, talvez, que a Trip é um grande, perene e circular erro. E é isso faz tempo. Nem é preciso fazer muita força para provar a tese. Basta dizer que em nossa edição 13, de junho de 1989, em vez de apenas nos conformarmos com as imperfeições, fizemos questão de registrar com texto bem legível, na capa da revista: “Esta edição poderia estar melhor”.

A imperfeição é não só nosso assunto predileto, mas uma espécie de olhar, de estilo, de modus operandi, que fomos desenvolvendo e aperfeiçoando, desde que, lá no início, fomos percebendo o quanto é verdadeira a frase que diz que “a imperfeição é a condição humana”.

Há as histórias pitorescas (como diria Arthur Veríssimo, nosso gauche preferido, sério candidato ao posto de nosso melhor erro) que ilustram bem. Uma das melhores é a capa da revista lançada em outubro de 1990. Na ocasião, julgamos que seria uma grande sacada, um ato de rebeldia e modernidade, estampar na portada a imagem de um simpático e desdentado negão jamaicano, que ostentava um sorriso peculiar, no qual se viam pedras coloridas incrustadas nos dentes que sobreviveram em sua boca sexagenária. Para completar, envolvemos a exótica figura numa moldura vermelha, que realçava sua cara reluzente. Não foi fácil ver encostar um mês depois, na frente da então nanorredação da Trip, um caminhão-baú da distribuidora, lotado de pacotes de revistas encalhadas. Para completar a ironia, os carregadores que desciam a carga do caminhão e iam entulhando nossa exígua sala de espera e nosso escritório modesto pareciam escolher descer os pacotes sempre com a tal cara do jamaicano sorridente virada para a calçada, onde estávamos incrédulos, como se ele risse das nossas expressões frustradas e assustadas.

Mas, afinal, aprendemos ou não com nossos erros? Tudo, claro, depende do referencial. Sob certo aspecto, talvez não tenhamos aprendido nada. Sim, porque, contrariando regras escritas nas pedras do muro do palácio dos revisteiros mais “bem-sucedidos” do mundo, continuamos colocando negros em nossas capas com frequência, diriam os catedráticos da área, preocupante. Da mesma forma, pessoas de mais de 60, 70 e até com mais de 100 anos têm frequentado não só nossas páginas, mas nossas capas amiúde. Basta somar as idades de nossos três personagens de capas da edição da Trip de fevereiro. Mesmo considerando os 20 e poucos da modelo norte-americana May Lindstrom, vamos para mais de 200 anos fácil, com a luxuosa contribuição de Oscar Niemeyer e Lelé Filgueiras.

Trip exportação

Ainda sobre a edição anterior, no intuito de deixar claro que estamos falando da nossa história, mas também da nossa realidade atual, qual teria sido a razão do enorme sucesso do ensaio com a já mencionada May Lindstrom, clicada pela fotógrafa Autumn Sonnichsen? A já quase famosa imagem de May fazendo xixi? Um corpo e um jeito bem distantes da cada vez mais construída beleza feminina idealizada? Por que será que a imperfeição mexe com partes do nosso cérebro tão empoeiradas e reacende sentimentos mais esquecidos do que bonecos Tamagochi?

A edição que você acaba de abrir foi feita para celebrar o erro. Para comemorar nosso fascínio pelo imperfeito, pela nossa própria condição. E aproveitamos para comemorar também dois fatos absolutamente marcantes:

A Trip foi eleita pelo quarto ano consecutivo a revista mais criativa e inovadora do Brasil, numa pesquisa publicada anualmente pelo jornal Meio & Mensagem, que colhe a opinião e os votos de parcela significativa do mercado de comunicação nacional.

No mês que vem, sairá nas bancas e lojas da Alemanha, da Áustria, da Suíça e de Luxemburgo a primeira edição da versão da Trip em alemão. Trata-se de uma parceria com uma editora com sede em Frankfurt, que licenciou não só nosso título, mas nossa maneira “errada” de ver o mundo, provavelmente o primeiro caso de uma fórmula editorial genuinamente brasileira exportada para o que é considerado por muitos o mais maduro e disputado mercado editorial do mundo.

Como já disseram por aí, “de erro em erro, vai-se descobrindo toda a verdade”.

Paulo Lima, editor

 

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