Su casa, mi casa

por Millos Kaiser
Trip #185

Conheça Mark Guard, milionário que organiza um grupo de sem-teto para invadir mansões

Conheça Mark Guard, milionário inglês que organiza um grupo de sem-teto para invadir mansões no distrito mais caro de Londres, onde já foi vizinho de gente como Woody Allen e Margareth Thatcher


Estamos em Belgravia, distrito mais nobre de Londres, onde um omelete na esquina custa 15 libras. A duas quadras do Palácio de Buckingham, quase ninguém caminha pelas calçadas imaculadas e o primeiro barulho que escuto é de um Rolls-Royce se aproximando. Mark para em frente a uma vitrine. “Essa aqui é boa. Definitivamente, uma possibilidade”, diz. Continua olhando para o vidro e aponta para outra direção: “Não, essa é melhor. Já estive lá uma vez, tem vista para a Eaton Square. Vou ficar com ela”.

Com ele falando assim, cheio de naturalidade, nem parece que está se referindo a mansões de 40 milhões de libras. Mas está. Nos últimos seis meses, esse excêntrico senhor inglês habitou em nove palacetes iguais ao que está mostrando nos anúncios da imobiliária, dando bom-dia para vizinhos como o diretor Woody Allen, a apresentadora Nigela Lawson, os atores Russel Crowe, Sean Connery e Elizabeth Hurley, e até a baronesa Margareth Thatcher. Tudo isso sem tirar nem 1 penny do bolso de sua calça de tweed.

Mark Guard é líder do Belgravia Squatters, grupo especializado em invadir mansões abandonadas e ocupá-las. A prática, conhecida como “squatting”, acontece no mundo todo, mas, no Reino Unido, país com leis habitacionais bastante particulares, é quase uma tradição. Quem entra legalmente num imóvel vazio (isto é, sem quebrar portas, janelas ou danificar a fachada) tem direito de residir nele até o proprietário se manifestar e gastar tempo e dinheiro com um processo de despejo na Justiça. Fora isso, a matemática também é favorável aos squatters: no país, estima-se que há 175 mil sem-tetos e 300 mil imóveis abandonados.

É como ele diz, “business é a arte de extrair dinheiro da carteira de um homem sem recorrer à violência”

Essa é uma das razões para Mark fazer o que faz, mas não é a principal. Na verdade, sua vida de Robbin Hood imobiliário começou graças a uma lista misteriosa, que, ele diz, chegou sem mais nem menos às suas mãos enquanto jogava golfe nas ilhas Cayman. Nela estavam o endereço de 312 mansões vazias em Belgravia, todas em nome de empresas estrangeiras, longe do alcance da fiscalização pública. Nem o governo sabe quem são esses proprietários, que podem estar lavando dinheiro, evadindo impostos ou têm algum outro rabo preso com a lei. Quem entregou-lhe a lista, e por que, Mark não revela. E nega veementemente que seu primo, relações públicas do atual primeiro-ministro, Gordon Brown, tenha alguma coisa a ver com a história.

Para Mark, trata-se de um serviço de utilidade pública: desmascarar milionários criminosos e dar moradia para quem não tem. “Estou mexendo na água para ver o que flutua e, mais importante, o que afunda”, explica. Até agora, das nove mansões em que o grupo entrou, duas, no valor de 20 milhões de libras cada, não foram reivindicadas e estão prestes a se tornar propriedade de Guard. Uma ainda tem seu futuro em julgamento e as outras foram devolvidas para seus donos, que, ao se identificarem, levaram uma boa mordida do leão do imposto de renda.

Política de boa vizinhança
É de se imaginar que Mark não seja exatamente o morador mais querido do bairro. “Estamos em perigo?”, pergunto. “Eu não sei quem são vocês. Podem ter sido contratados por um desses milionários aqui prestes a perder sua casa. Isso aqui [o gravador que deixei no bolso de seu paletó] pode explodir agora, mas, como você está perto, sei que não vai”, ele provoca, enquanto Collin, seu segurança escocês, “pequeno, mas muito ágil”, nos observa. Depois de duas ameaças de morte e de descobrir que estava sendo grampeado, Mark anda sempre acompanhado.

 

Ele posa para as fotos reclamando, mas é nítido que adora a fama conquistada recententemente. Imagens de Mark trepado em janelas ou mandando um “fuck you” para policiais frequentam as páginas dos jornais ingleses desde que o grupo invadiu a embaixada do Sudão, uma construção de 1 km de largura e 40 quartos, onde dizem ter encontrado manuais para a produção de armas químicas com a palavra Jihad em árabe.

 

Depois veio a casa onde morou David Plunkett, ex-Home Secretary, responsável pela segurança nacional. Paredes à prova de bala, janelas à prova de bomba, 150 policiais morando no prédio ao lado, sistema interno de TV, dois seguranças fazendo vigia e os squatters entraram por uma janela “destrancada”. Explicando as aspas: semanas antes, o grupo visitou a casa, disfarçado de construtores, e fez o favor a si mesmo de deixar a janela aberta.

 

Uma senhora passa e acena. “Os vizinhos têm sido bastante receptivos. Já ganhamos doações, presentes e uma televisão. Eles preferem ter squatters cuidando da casa do que ratos e pombos sujando tudo”, conta. A política da boa vizinhança parece imperar. Tanto que, em outubro, Mark e mais dois squatters bateram à porta de Margareth Thatcher para entregar um sugestivo presente de aniversário: um livro sobre prédios históricos de Londres.

O Natal não foi muito generoso com o Belgravia Squatters. Quando a reportagem entrou em contato com o grupo, eles haviam acabado de ser expulsos da casa de David Plunkett e forçados a se instalar num porão insalubre ao lado da Goldman Sachs – menos Mark, que mora no bairro vizinho de Knightsbridge. Ironicamente, cinco passos separam o muquifo – pense no banheiro daquela cena escatológica do filme Trainspotting – de um dos maiores bancos de investimento que existe. Uma semana depois, porém, voltaram ao luxo a que estão habituados, ocupando uma casa em frente à loja de departamentos Harrods.

Tag, sul-africano, ex-combatente nas guerras da Bósnia, do Kosovo, do Iraque e do Afeganistão, foi quem abriu a porta do muquifo, depois de darmos três batidas pausadas nela – é o código para entrar. Além dele, moravam ali Collin, Abdul, da Nigéria, e Jedi, apelido de um polonês que foi viciado em heroína por sete anos até descobrir o outro lado da força. “Virar um cavaleiro Jedi salvou minha vida”, ele diz, sério, com seu sabre de luz de brinquedo.

Não há integrantes fixos. Mark recruta novos moradores a cada ocupação – a maioria não é exatamente o tipo de gente que você convidaria para casa. Mark já expulsou 17 deles, por causa de roubos ou uso de drogas pesadas nos squats, como o caso de um senhor de 70 anos viciado em crack, que morava na rua e é dono de uma loja em Portobello Road.

Trambiqueiro
Guard sabe falar com essas pessoas. Mais que isso, ele gosta. É a única forma de explicar por que um milionário, dono de fazendas e colecionador de antiguidades, não está em casa com sua mulher, uma modelo mexicana, tomando seu chá das cinco. Em vez disso, “só para cortar o tédio”, Mark prefere filmar viciados, ladrões e prostitutas para uma série de documentários que ele mesmo financia, iniciada há três anos.

 

Em bom português, Mark é um trambiqueiro. Com 21 anos, ganhou uma concorrência milionária com uma construtora fictícia. Deu um jeito de fazer a obra acontecer, mas um ano e meio depois já estava falido: “Foi culpa da recessão e do meu estilo de vida. Carros, mulheres, viagens... Tinha uma Ferrari Maserati, ia para a Itália comprar Gucci. Era ridículo”. De novo, na base da malandragem, salvou sua conta bancária com um negócio que foi até parar no Guinness Book, o livro dos recordes, como o mais lucrativo do planeta. Guard comprou um pedaço de terra em Guildford por mil libras e, alguns anos mais tarde, vendeu-o por 3,5 milhões de libras. É como ele diz, “business é a arte de extrair dinheiro da carteira de um homem sem recorrer à violência”.

 

Pergunto o objetivo de sua empreitada, e ele responde sem esclarecer se está recorrendo ao típico humor inglês: “Encher as mansões de bombeiros, enfermeiras, professores e qualquer outra pessoa que não possa pagar 400 libras semanais por uma cama. Assim que eu tiver posse de todas as casas, expulso todo mundo, vendo tudo, compro um barco e vou dar uma volta ao mundo com as minhas 16 namoradas”.

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