Missão de Pesquisas Folclóricas

por Daniel Tamenpi

O grupo Elo da Corrente faz releituras do material colhido por Mário de Andrade em 1938

O escritor Mário de Andrade tinha uma fome voraz em relação à cultura brasileira, principalmente em relação às regiões Norte e Nordeste e a sua música. Mário percebeu o que vinha sendo feito na Europa desde o começo do século XX com o estudo de músicas étnicas e populares. Havia um ramo da ciência denominado musicologia comparada, que tinha como tema a investigação de elementos da música popular de certas regiões. Em 1938, enquanto diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, Mário organizou a Missão de Pesquisas Folclóricas com o objetivo de investigar e arquivar as manifestações populares típicas das regiões do Brasil que não tinham contato com o exterior e corriam o risco de desaparecer com a crescente urbanização e industrialização do país. Sua preocupação era que o rádio – o meio de comunicação que dominava na época – pudesse acabar com nossas expressões populares. O projeto consistia em enviar uma expedição de quatro pessoas escolhidas por ele para gravar em equipamentos de som e imagem as danças e músicas do Brasil.

Diversos projetos foram feitos em cima da Missão. O mais novo aconteceu na Semana Mário de Andrade, em junho passado, em parceria com o Centro Cultural da Juventude. O grupo de hip-hop paulistano Elo da Corrente foi convidado para fazer um show baseado na obra da Missão. Eles tiveram acesso a todo o acervo, inclusive a peças que não estão nos CDs lançados pelo Sesc. Montaram um show com 13 músicas com todos os instrumentais sampleados de gravações da Missão. A idéia agora, é lançar esse material do show um em cd. Em conversa com os integrantes Caio e Pitzan, eles contaram como tudo isso aconteceu:

Vocês já eram familiarizados com a Missão de Pesquisas Folclóricas?
Ainda não, só sabíamos do lado escritor do Mário de Andrade; a Missão de Pesquisas Folclóricas em si só viemos a conhecer com esse trabalho.

Como surgiu o convite para o show?
Surgiu de uma parceira entre Centro Cultural São Paulo e Centro Cultural da Juventude. Eles organizaram um fim de semana com homenagens ao Mário e propuseram aos artistas convidados que fizessem releituras de fonogramas registrados na Missão de 1938. O contato foi feito dois meses antes da data marcada para que tivéssemos pelo menos um pouco de tempo para preparar algo para a apresentação.

Quanto de material foi entregue na mão de vocês?
O SESC já havia lançado uma caixa de CDs com praticamente o suprassumo dos 1.299 fonogramas que estão sob poder do CCSP. Esse foi o primeiro material fornecido para que nos familiarizássemos com os ritmos, timbres das gravações, e até mesmo para que entendêssemos melhor o que foi e como foi a Missão; já que nessa caixa o SESC catalogou todos os ritmos, com textos e comentários, fotos da época e até anotações dos quatro pesquisadores que realizaram a viagem e seu propósito. Depois dos CDs, começamos a fazer visitas ao CCSP para escutar e possivelmente utilizar algum material que não houvesse sido lançado ainda. Podemos dizer que tivemos acesso a praticamente todo o material da Missão.
 
Vocês já conheciam estilos como carregadores de piano, canto de pedinte, aboio ou outros do material da Missão?
Os aboios já conhecíamos por causa do Rei do Baião. Existiam outros ritmos mais familiares, como coco, maracatu, boi-bumbá etc. Porém carregadores de piano foi um dos que mais nos despertaram a curiosidade, pense em seis caras carregando um piano de armário em cima da cabeça, marcando o ritmo com o canto e marchando em cima dos compassos...

Qual foi a maior dificuldade pra vocês na produção?
Principalmente o tempo. Conciliar os nossos horários [Caio, Pitzan e PG] às vezes já é difícil, e para esse projeto resolvemos formar um time, então foi um pouquinho mais complicado. Marcelo Munari, grande amigo e guitarrista, trabalhou conosco nos arranjos e na direção artística do show. Rogério Martins, percussionista do Hurtmold, chegou junto nas últimas duas semanas para dar uma cara mais orgânica para os ritmos e batidas pré-programados que já havíamos feito. Ainda abrilhantaram nossa apresentação os amigos do Mamelo Sound System e Lumbriga e Gato Congelado do Subsolo.

O show teve quantas músicas? As produções foram feitas sampleando quais estilos? As letras eram antigas ou vocês escreveram um material novo?
Fizemos 13 músicas contando intro e outro. Foram cinco novas canções baseadas na Missão e
seis remixes do nosso disco Após Algumas Estações. Sampleamos praticamente todos os ritmos, bumba meu boi, maracatu, coco, reis de congo, tambor de mina, toada, caboclinhos, etc.

Vocês vão gravar essas músicas em estúdio e lançar um material novo?
A ideia existe, precisamos viabilizar esse projeto de alguma maneira; são 13 músicas feitas e isso já é um disco. Acho que a importância desse material da Missão do Mário para a música contemporânea é enorme, e talvez por termos trazido para uma linguagem mais atual mereça ser gravado dignamente. Isso vem sendo pensado e trabalhado paralelamente ao novo álbum do Elo que estamos produzindo. Vamos ver no que dá.

O que foi a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938

 

A equipe da Missão era formada por Martin Braunwieser, músico e maestro do Coral Paulistano; Luiz Saia, arquiteto e membro da Sociedade de Etnografia e Folclore, pesquisador da Divisão de Documentação Histórica e Social e chefe da missão; Benedito Pacheco, técnico de som; e Antônio Ladeira, assistente técnico de gravação do Departamento de Cultura. A equipe embarcou em fevereiro daquele ano a bordo do navio Itapagé rumo ao Nordeste e Norte do país e só retornou em agosto, por ordem do então novo prefeito de São Paulo Prestes Maia, que afastou Mário de Andrade do cargo e desfez, assim, a expedição. Nesses seis meses de viagem, os integrantes trouxeram um enorme acervo composto de adornos usados pelas comunidades visitadas, fotos, filmes, músicas gravadas e anotações. Ao todo, visitaram 28 cidades dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pará, catalogando mais de 70 grupos musicais ou artistas independentes, gerando um catalogo histórico-fonográfico com 1.299 fonogramas originais da música popular tradicional. Gravavam ao vivo, em discos de acetato com sistema de 78 rotações. Para a época, pode-se imaginar o tamanho da bagagem da equipe: os pertences pessoais dos pesquisadores somavam-se a seis malas e três caixas que abrigavam gravador, amplificador, agulhas, microfones com cabos e tripé, válvulas, 237 discos, gerador, pré-amplificador, blocos de papel, cadernetas para anotação, fones, pickup para gravador, 118 filmes para fotografia, 21 filmes para cinematografia, câmera fotográfica com filtros e lentes, aparelho cinematográfico com lentes e pastas de couro para transporte dos discos. Registraram cânticos diversos, cantigas de roda, cantos de pedintes, cantos de carregadores de piano, bumba meu boi, congo, reisado, coco, entre outros.

 

Vários fatores curiosos foram descobertos como, por exemplo, os bois-bumbás do Maranhão, que são divididos em estilos ou sotaques. O Boi da Ilha, com estilos indígenas, o Boi de Baixada, que possui as raízes nas cidades do interior do Estado, e o Boi de Orquestra, mais musical e feito preferencialmente pelos brancos. Cada um desses grupos possui suas especificidades em relação à fantasia, ao ritmo e à apresentação. Além dos bois-bumbás, os cineastas filmaram e entrevistaram outras manifestações folclóricas do Maranhão. Uma delas é o tambor de crioula, um batuque em ritmo de festa dançado por mulheres. Outra é o tambor de mina, ritual religioso afro-brasileiro que se originou com os escravos negros vindos de Benin.

Uma das coisas que mais espantaram os pesquisadores foi encontrada no Bumba Meu Boi de Belém do Pará. O estilo tinha influência direta do samba carioca, mostrando que a influência da migração era clara. Havia uma carnavalização no estilo. Inclusive, foi encontrada em meio ao material uma paródia de “Pelo Telefone”, samba de Ernesto dos Santos, o Donga, e Mauro de Almeida que fez muito sucesso nas primeiras décadas do século 20. Dos 237 discos de acetato levados pela Missão de Pesquisas Folclóricas, 169 foram utilizados para as gravações no aparelho de marca Presto Recorder, com agulhas de safira. Neles foram registradas aproximadamente 1.500 melodias. Número tão grande de linhas melódicas é justificado, em parte, pela presença de vários bailados ou grupo de cantigas entoados tendo como pano de fundo uma história ou narrativa maior.

As 674 fotos feitas pela Missão de Pesquisas Folclóricas foram tiradas, quase todas, por Luiz Saia. Acompanham cenas dos assuntos pesquisados, registram o rosto de informantes, músicos, cantadores e artesões entrevistados. Em algumas cidades foi possível para a Missão coletar instrumentos, vestimentas e objetos relativos aos assuntos pesquisados. Nos dias em que não gravava, a caravana se dedicava também a outros temas, registrando detalhes da fabricação de utensílios populares, aspectos da arquitetura, da poética popular etc.

Na volta para São Paulo, a Missão entregou o material a Mário de Andrade e sua assessora Oneyda Alvarenga, que acabou tendo importância fundamental no arquivamento da Missão. Com a morte de Mário, Oneyda foi a responsável por toda a organização do material. Dedicou grande parte de seu tempo ao acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, com a catalogação de objetos, registros sonoros etc.

Essa viagem foi essencial para formar uma identidade cultural brasileira. Mas a verdade é que, até 2006, a Missão era apenas citada, e ninguém a conhecia. O acesso a seus registros era muito complicado. Muita gente achava que não passava de um mito. Para alegria dos brasileiros e do mundo, o Centro Cultural São Paulo e o Sesc lançaram uma caixa com seis CDs com a seleção dos melhores registros.

A partir do lançamento dos CDs a pesquisa da Missão ficou aberta para todos. O Centro Cultural São Paulo com a sua discoteca Oneyda Alvarenga (em homenagem à assistente, que depois virou diretora da discoteca Municipal de São Paulo, onde permaneceu até sua aposentadoria) abriu uma exposição permanente sobre a Missão.

O Centro Cultural São Paulo fica na Rua Vergueiro, 1000, no Paraíso.
Tel. 3397-4002

Os 6 cd's relacionados a Missão de Pesquisas Folclóricas é um lançamento do SESC-SP, e pode ser comprado através do site http://www.lojasescsp.org.br

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