Meninos que se amavam

por Luiz Alberto Mendes


Aquele era o buraco no qual eles eram esvaziados do que havia de melhor em suas vidas. A lembrança do mundo guardada na memória, ainda empolgava seus corações adolescentes. Tudo que lhes importava de verdade faltava.

Aquele mundo os espremia, doendo a cada segundo. Sombra do que haviam sido, seus gestos não eram reais. Tudo vagava perdido e confuso. 

A vitalidade sexual pulsava ansiedade em cada uma de suas moléculas. A adrenalina forcejava veias intumescidas. Presos por delitos graves, eles enfrentavam conseqüências gravíssimas. Resistiam, embora sangrando desatinadamente. Submetiam-se ao despotismo dos policiais, anulando-se para ressurgir sempre.

O sexo, como a vida, lhes brotava em gotas de suor a encharcarem seus uniformes de brim grosseiro. A pele, curtida ao sol, na escravidão da enxada e do enxadão, estava sempre escura. Seus rostos viviam afogueados de desejos insaciados. Olhos de fogo devoravam os garotos menores. No silêncio inteiro exigido a ferro e fogo, vidas eram afogadas em melancólicas tristezas. Mãos socavam o saco, minando energias nas noites mal dormidas.

Trancados em segredo, eles se queriam. Um amor que não era ainda, os envolvia. Apaixonados, sedentos dos olhos desejosos do outro, eles se escondiam. Ninguém poderia saber. Os guardas os espancariam e os jogariam na cafua, depois meses sem fim na cela forte.

 Temiam a desumanidade dos policiais e a escuridão da cafua. Mas temiam muito mais a censura e o preconceito dos companheiros. Seriam escorraçados do convívio. Humilhados barbaramente e para sempre. Nunca mais seriam considerados iguais. E a caminhada, eles sabiam, não parava ali.

Consideravam-se criminosos. Estavam cooptados pela cultura criminal nascida espontaneamente nas instituições para menores de idade infratores do Estado. Aquela era a única defesa. A promessa incrustada no fundo da alma de que alguém haveria de pagar por todo aquele sofrimento. O ódio aos “otários”, ao “Zé povinho”, os unia e gerava forças para tudo resistir. Futuro era negro. Prisão e morte faziam parte do cardápio.

Os riscos eram imensos. Mas aquela vida pela metade, cortada por desejos insatisfeitos, já era impossível. Não havia como suportá-la mais. Havia um delírio que os extraia da dor, misturando suas almas na febre dos olhares. Namoravam-se longamente, mas conversavam pouco. Não podiam despertar suspeitas. Escreviam cartas, criavam códigos e aprendiam a falar e ouvir com os olhos.

Toda emoção que os sufocava no silencio, os tornava vivos também. Procuravam os cantos, as mãos tremiam de ansiedade pela carne do outro. Os lábios ficavam moles na presença. Sonhavam com o outro e procuravam dormir em camas próximas para tomarem banho juntos. Era perigoso. Os guardas vigiavam, os companheiros suspeitavam. Quando conseguiam ficar próximos e nus, o perigo era a excitação a denunciá-los. 

Não agüentavam mais. Necessitavam o real. Tudo resvalava e se esvaia nos olhares. Eles se queriam e assumiram os riscos. O desejo pulsava, havia um calor úmido na boca. As emoções se tornaram tão evidentes que já não ligavam mais para a reputação. A proteção mútua com que se cercavam, ruía. O caminho era inevitável, mesmo que custasse tudo.

Só havia um jeito de burlar a vigilância dupla. De madrugada, tentariam. Combinaram: se não desse certo, fugiriam juntos. Tudo era decisão na noite calada. Nas pranchas de madeira do assoalho irregular, o medo e aquilo que não espera, se misturam. Não há carícias na urgência. É um jogo de homens. Exprimem apenas o impossível de exprimir. Esguios em seus corpos juvenis se angustiam na posse de toda aquela natureza comovente. O susto e o receio os excitam ao extremo, foram cedendo. Tudo era para ser aceito, não compreendido.

Varridos pelo abismo do prazer que apontava o infinito, libertam a grande pressão. O deserto de suas almas se enche da solidão universal. Já não bastava a realidade, não havia mais chance ou ocasião a perder.

E quando voltaram às suas camas, tudo mais era sucata do passado. Que decisão tomar? Depois da pequena morte, havia outra forma de considerar todas as coisas. Nada mais era tão implacavelmente necessário do que construir para sempre o que foram por segundos.

Já agora eram insuficientes e incompletos. Estavam surpresos. Não conseguiriam mais ir além sozinhos. Somente com o outro havia significado. Não havia mais lembranças ou previsões. Queriam o mundo nas mãos e não podiam interromper mais.

De manhã cedo saíram do alojamento com as fotos e objetos mais queridos. Enquanto os meninos tomavam o café da manhã para seguirem para a lavoura, eles pulavam o muro atrás da cozinha e corriam pelo pomar. Aquela era mais uma forma de amar que valia a pena.

Composto por Luiz Mendes em 11/05/2004.

 

 

 

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