A Invasão e o Significado

por Luiz Alberto Mendes

A  INVASÃO

 

Na madrugada, sem sono, eu e meu cachorro (Chicão) saímos a andar. Ainda tem muito mato, terrenos abandonados, árvores e espaço livre por aqui (Embu das Artes). Havia um lugar em especial. Chamávamos de “Fábrica”. É uma pequena elevação que não chega a ser morro de fato. O cimo fora terraplenado e em cima havia uma fábrica de cera. Como cera é algo do passado, a fábrica foi à falência. A dona do terreno, esperta, derrubou o prédio para não pagar imposto calculado sobre metro quadrado construído. Ao fundo, a residência do caseiro. O imenso terreno quedava-se inútil, dominado pelo mato que o caseiro anualmente incendiava.

Em volta do que fora a fábrica de cera, há uma larga rua asfaltada. Costumava subir para meditar ou passear com o cão naquela área isolada do mundo. Estava angustiado, cheio de reflexões amargas e desoladoras. Pensando que às vezes não somos nada. Apenas pequenos seres humanos desamparados, pasmos diante do espetáculo da vida. A falta de sono amargurava. 

Chicão cheirava cada touceira de mato à minha frente. Foi ele quem percebeu e latiu. Olhei admirado de ainda haver alguma coisa acordada àquela hora. Fui me aproximando, curioso. Era uma multidão. Como formigas, ordenadamente tiravam algumas coisas escuras e outras pontudas de um caminhão, e subiam o morro de onde eu os observava. Rodeei e fiquei olhando. O povo passava por mim carregando caibros de madeira, bambu, rolos de plástico preto, facões nas costa, enxadas nas mãos e me cumprimentava.

“_ Boa Noite!” Diziam com meio-sorriso.

A sigla MTST apareceu escrita na lona de plástico que recobria as colunas da primeira barraca montada. Era invasão. Sentei-me no chão, o cão aninhou-se em mim, intimidado pela multidão. Acariciei e acalmei-o, deliciando-me a contemplar toda aquela movimentação a me surpreender na madrugada.

Antes de amanhecer, uma pequena parte do terreno estava ocupada por tendas e cabanas. O povo capinava em volta e fazia ruas. O caseiro teve que engolir em seco e comunicar aos patrões. A cada minuto ia chegando mais gente. Mastiguei em falso e sai andando com o cachorro à frente. Desci o morro tecendo  frias teias de raciocínio. Perguntava-me quando entenderei que não sou especial quanto imagino e reconhecerei minha estupidez. Meu estado era desolador. Pensava em tornar as coisas mais expressivas. A vida sempre me pareceu curta demais. E fui esquecendo da invasão que acompanhara, qual fosse coisa sem importância.

Em pleno ressentimento pela insipidez da vida que estava levando, viajei para o Rio de Janeiro a trabalho. Estar próximo ao mar torna até a angústia inapropriada. Acredito que a dificuldade esteja no fato de que meu espaço interior sofre de pressão demográfica. Sou muitos em mim mesmo de uma vez só.

Às vezes a vida da gente parece um silêncio aconchegante, somente quebrado pelo outro, a nos trazer o distante e o inusitado. E foi assim que me senti ao chegar aqui no bairro, depois de dias ausente. De minha casa dava para ver; o morro da fábrica fora inteiramente ocupado. Fui ver de perto. O povo vinha com braçadas de bambu, sarrafos, rolos de plástico preto, pontaletes e caibros nas costas. Trocentas cabanas tomavam o cimo e as encostas do morro. Dezenas de homens e mulheres feriam o chão com enxadas e cavadeiras, levantando colunas e esticando lonas de plástico. Todo morro fora tomado. Não sobrou nenhum canto de mato.

Perguntei: o "Movimento" estava em negociação com a Caixa Econômica, o CDHU e a dona do terreno. Ela esta atrasadíssima com o pagamento do IPTU e por conta disso não conseguia a reintegração de posse. Parecia uma invasão calculada. Era um acontecimento de grande importância política. Estávamos às vésperas da eleição para prefeito e vereadores. O povo da região havia aderido e estava chegando muita gente com fé de conseguir seu canto. Aquele pessoal estava dormindo naquelas barracas sob chuva e o frio intensos. Não havia água, banheiro, luz, nada. Só a esperança que crescia à medida que o tempo foi passando e eles foram se acostumando à idéia de que estavam em seu pedaço de chão.

Aquele era o mundo e estava acontecendo. Como eu não havia percebido? Às vezes, em nossa amargura, transformamos bichos empalhados em coisas vivíssimas. Somente em nosso coração percebemos que não temos mais nada sobre nosso corpo, além da pele cansada e dos olhos brilhando.

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Luiz Mendes

26/05/2014.       

 

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