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MV Bill, o soldado que fica

por Luiz Filipe Tavares

Leia entrevista com o rapper carioca e veja clipe inédito da música ’O Soldado que fica’

Nascido Alex Pereira Barbosa, MV Bill cruzou há muitos anos o limite que o definia como rapper. Cineasta, ativista, autor, compositor e produtor, o Mensageiro da Verdade lança agora seu mais novo clipe, “O Soldado que Fica”, colocando mais uma vez o dedo na ferida da sociedade para falar das ocupações policiais nas favelas do Rio de Janeiro. A história de um homem que é deixado para trás para morrer em um confronto com policiais é contada por Bill com a ajuda do diretor Toddy Ivon, um dos mais novos talentos do videoclipe no cenário rap brasileiro (leia entrevista aqui).

O carioca co-criador da Central Única das Favelas (CUFA) se prepara para lançar disco novo no ano que vem, um EP de oito músicas que ainda não tem nome, mas que sai de forma independente trazendo novas faixas deste que é hoje um dos mais influentes artistas do rap brasileiro.

Artista independente de alta quilometragem, Bill sabe muito bem como transmitir sua mensagem nos grandes meios de comunicação. O rapper é hoje o apresentador do programa O Bagulho é Doido, que vai ao ar semanalmente no Canal Brasil trazendo entrevistas com personagens que tem tudo a ver com as periferias do país.

Para comemorar o lançamento do clipe, batemos um papo com Bill para falar do novo disco, o processo de gravação do clipe, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e o futuro da segurança nas favelas cariocas.

Em que momento você teve a inspiração para escrever a letra de “O Soldado que Fica”?
A inspiração aconteceu há três anos e pouco atrás, quando a Cidade de Deus recebeu a sua Unidade de Policiamento Pacificador (UPP). A CDD foi a segunda comunidade do Rio a ter uma UPP instalada. Nós sabemos que dentro dessas operações não se prende muita gente; muitos fogem, mas alguém precisa ficar pra manter o trabalho e para garantir a fuga dos chefes. Foi nesse momento que comecei a pensar nessa história que virou “O Soldado que Fica”.

"Dentro dessas operações [nas favelas] não se prende muita gente, muitos fogem; mas alguém precisa ficar pra manter o trabalho e para garantir a fuga dos chefes. Foi nesse momento que comecei a pensar nessa história que virou 'O Soldado que Fica'."

De lá pra cá você ficou conhecendo algum caso específico que ajudou a moldar a ideia da música?
São várias histórias. Na verdade isso é até conteúdo repetido. Eu particularmente nem gostaria de ter que voltar a esse tema. Achei que já tivesse matado essas ideias com “Soldado do Morro” e “Soldado Morto”, mas percebi que tinha essa continuidade na figura do cara que fica para garantir a fuga do resto da quadrilha. E esse cara que fica, na maioria das vezes, fica para morrer. Ali ele não tem mais como retroceder. A fuga dele é só a morte.

Como rolou essa parceria do clipe com o diretor Toddy Ivon?
Conheci o trabalho dele antes de conhecê-lo. Eu queria dar uma cara bem apresentável para esse trabalho novo e sei que uma produção audiovisual bem feita pode fazer isso muito bem. O Toddy foi o cara que começou a dar um banho de qualidade nos videoclipes nacionais de rap, mesmo sem, até o dia que eu o conheci, ter feito nehum clipe para os grandes nomes do estilo. Mas mesmo assim dava pra sentir a qualidade dos vídeos dele. O trabalho que ele imprime na música das pessoas é de uma qualidade de gente grande. Foi isso que me fez querer trabalhar com ele. Fora que ele é um cara fantástico. Ele é gente boa pra caralho. A parceria deu tão tão certo que nós já estamos estudando a ideia de fazer mais quatro clipes do disco novo.

Como foi a criação do roteiro?
Quem trabalha comigo tem liberdade para criar. Eu não sou ditador nessa questão. Estudamos juntos um roteiro ao qual o Toddy deu uma visão bem cinematográfica mesmo, com questões abstratas que funcionaram muito bem na gravação. Se fosse pra ter só minhas ideias eu chamava um pessoal da CUFA para gravar comigo e pronto. Mas o que eu queria eram novas ideias dentro de um conceito pronto e o Toddy trouxe tudo isso e muito mais. Foi uma colaboração impecável.

"As UPPs são uma iniciativa necessária e importante. Mas estão longe de serem capazes de resolver todos os problemas das favelas"

Como foram as gravações? As pessoas das comunidades participaram?
A gente gravou na Comunidade dos Fogueteiros, que fica na região central do Rio de Janeiro. Quando eu levei a ideia para os moradores fui extremamente bem recebido. Quando cheguei lá e andei durante o dia eu percebi uma comunidade diferenciada, especialmente porque na maioria das favelas da cidade não tem mais espaço para construir nada, o que não acontece nesse lugar. Lá ainda há muito espaço e isso me chamou bastante a atenção. E o envolvimento da comunidade na gravação foi perfeito. Tivemos casa pra usar de camarim, casa pra filmar dentro, água para o elenco, sombra quando choveu... Então foi muito bacana.

Como os moradores das comunidades pacificadas estão lidando com as UPPs e com o número crescente de turistas que está indo visitar as favelas?
As UPPs são uma iniciativa necessária e importante. Mas elas estão longe de serem capazes de resolver todos os problemas das favelas, seja pela postura dos próprios policiais, seja pela adaptação dos próprios moradores das comunidades, que por muito tempo tiveram relações muito hostis com a polícia. Ainda rola muita disputa dos comandos da própria polícia do Rio nas favelas pacificadas e ainda rola disputa com os comandos do tráfico. Tudo isso em uma mesma engrenagem que não é tão simples assim de se resolver. As UPPs são importantes sim, mas ainda estão longe de solucionar o verdadeiro problema. As comunidades já ocupadas, hoje, estão passando por uma sensação de alívio. O número de homicídios caiu, assim como o número de prisões e apreensões nas favelas. Mas para trazer o progresso e a paz para aquele local nós precisamos de mais coisas além do braço policial da cidade.

Mesmo porque não adianta você levar só a segurança para lá e dizer que isso é o Estado na favela. Ainda faltam construir hospitais, postos de saúde, escolas... 
A segurança precisa sim ser um dos braços do Estado dentro das favelas, mas não pode ser o único. Em algumas UPPs já tem até alguns policiais muito cheios de boa vontade que tentam fazer o serviço de assistentes sociais, fazendo recreação com as crianças e coisas assim. Claro que é muito legal ver essa boa vontade acontecendo, mas esse não é o papel deles. Esse é o papel de um recreador. O que as pessoas precisam é de outras secretarias que não a de segurança entrando com o mesmo vigor da polícia nas favelas do Rio. É aí que a gente começa a pensar em pacificação de fato. Do contrário é só ocupação.

Com a onda de pacificações, como você acha que o Rio de Janeiro estará daqui há 10 anos?
Entrevistei o Secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, há um tempo. Ele me disse uma coisa que me deixou preocupado. Segundo ele mesmo, as UPPs tem futuro incerto no Rio de Janeiro. Ele vai se aposentar em breve e diz não saber se seus sucessores vão ou não dar continuidade à política que ele criou. Então ainda não dá pra pensar a longo prazo. Temos é que pensar com as possibilidades que nós temos nesse momento. Mas ainda que as UPPs fossem as soluções, aqui no Rio estamos inaugurando ainda a 23ª UPP em uma cidade onde há 790 favelas. Então os primeiros passos já foram dados. E foram passos importantes. Mas ainda não dá para fazer previsões de uma década em uma situação como essa.

"O que as pessoas precisam é de outras secretarias que não a de segurança entrando com o mesmo vigor da polícia nas favelas do Rio. É aí que a gente começa a pensar em pacificação de fato. Do contrário é só ocupação"

Queria que você falasse também um pouco sobre a CUFA. Como foi que você se envolveu com o ativismo propriamente dito?
Hoje eu já não faço mais parte dos quadros da CUFA e não tenho mais cargo lá dentro. Mas a CUFA foi uma instituição que eu ajudei a criar e que utilizava-se muito do discurso do hip hop: falar de mudança, de injustiça social e de preconceitos. Foi ela que me deu a oportunidade de praticar tudo aquilo que eu discursava. Começamos no Rio e logo ganhamos braços, crescemos e hoje estamos em 27 estados caminhando com as próprias pernas.

As UPPs mudaram em alguma coisa o trabalho da CUFA? É mais fácil trabalhar em uma comunidade pacificada do que em uma não-ocupada?
Para a CUFA não faz diferença: qualquer comunidade que precisar dos talentos da organização e onde for possível distribuir benefícios ou instalar um braço, ela estará presente. Não rola nenhuma distinção de comunidades por ocupação e muito menos por facção. A CUFA não se fecha: faz críticas mas também se abre à discussão sobre aquilo que nós estamos denunciando. O papel da CUFA é criar pontes por onde possam passar as possibilidades, seja em favelas com ou sem ocupação

"O Soldado que Fica" estará no seu próximo disco. Como está a preparação pra esse lançamento e quais as temáticas que serão abordadas?
O disco está pronto, exceto por três músicas que ainda estão sendo masterizadas. Será meu segundo disco independente e um que eu tive um bom tempo para elaborar. Ele vai sair como um EP de oito faixas, então estou dando a atenção toda que eu daria a um disco de 16 músicas para a metade delas. Então atenção redobrada dessa vez [risos].

"A globalização está fazendo com que as pessoas se sintam cada vez mais inseridas, embora ainda tenha muita exclusão. Um muro não impede mais que alguém do Capão Redondo invada o Morumbi de forma virtual. Um muro não causa mais essa separação."

Você sempre foi um cara muito ligado na internet, mas ainda assim é um figura que já passou muito pela televisão. Como você vê a importância de aparecer na grande mídia?
Sou um dos poucos caras do rap que fez essa transição completa: que já fui artista de gravadora e que hoje lanço discos de forma totalmente independente utilizando a internet como ferramenta de divulgação do meu trabalho. Tenho visto com bons olhos a cena atual e seu crescimento, mas os espaços ainda continuam meio escassos em todo o Brasil. Eu sou de uma cidade que não tem características de hip hop. Minhas músicas não tocam no rádio e meus videoclipes não passam mais na MTV e nem nas outras emissoras. Então foi a internet que me fez encontrar as pessoas que querem ouvir meu som. Então eu acho que, mesmo tendo espaço nos programas de TV e tendo meu próprio programa na TV à cabo, não dá para largar a internet. Hoje as carreiras dos músicos precisam dela. É uma questão de convergência.

Falando nisso, como a expansão do acesso à internet nas favelas mudou o fluxo de informação nas comunidades?
Mudou de uma forma muito drástica. Antes era necessário esperar o noticiário principal entrar a noite para que todo mundo tivesse a informação nas comunidades. Hoje não. Com a internet nas favelas, hoje só não fica informado quem não quiser. Hoje os furos de reportagem vem primeiro nas redes sociais, depois na grande mídia. A globalização está fazendo com que as pessoas se sintam cada vez mais inseridas, embora ainda tenha muita exclusão. Mas um muro não impede mais que alguém do Capão Redondo invada o Morumbi de forma virtual, por exemplo. Um muro não causa mais essa separação.

MAKING OF

O diretor Toddy Ivon conta sobre o processo do vídeo

"Esse vídeo do Bill foi gravado com os mesmo procedimentos técnicos de captação de imagem do filme O Hobbit. Apesar de nosso filme não ser 3D como o filme do Peter Jackson, todos os outros processos pelos quais as imagens tiveram que passar foram feitos da mesma forma que o filme de Hollywood e com profissionais do mesmo nível. O Rafael Varandas, que é um dos poucos DIT - Digital Imaging Technician (algo como fodão nerd pra caralho), da RED CAMERA no Brazil, montou um laboratório digital em cima do morro, o que nos possibilitou ter rápido acesso às imagens de 5K já com uma pré-correção de cor no set. Pra editar esse material usamos uma placa aceleradora RED ROCKET que nos deu a possiblidade de editar, corrigir cor e finalizar em "real time" durante o processo de pós-produção.

O Fernando Moraes que dirigiu a fotografia juntamente com o Rafael Varandas foi responsável pelas imagens fantásticas que conseguimos lá no morro, ele já tem uma vasta experiência em fotografar comunidades por ter trabalhado no Reis da Rua da TV Cultura e também por muito tempo trabalhado com "O" mestre Leandro HBL diretor do filme Favela On Blast. O Juninho, nosso coordenador de set foi muito importante em todo processo; ele tem uma vasta lista de filmes em sua carreia como Os Mercenários [The Expendables, 2010] dentre outros, foi responsável por gerir as coisas no morro juntamente com a ajuda do próprio Bill.

Usamos as mesmas armas usadas no filme Tropa de Elite com os mesmos técnicos de efeitos especiais. O toque final foram as dicas valiosas do artista Oga Mendonça na finalização de todo o material, tanto na cor quando no desenvolvimento da fonte do título do filme. Eu só pulei fora do vôo de helicoptero, eu acho o chão um lugar muito mais seguro [risos]."

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