Lições de segurança

O jiu-jítsu surgiu como uma técnica de defesa pessoal para ”jovens franzinos sem perfil de lutador”. E acabou fazendo entusiastas entre gente como Oscar Niemeyer e Carlos Lacerda

 

Um menino assustado se escora num poste para tentar se proteger do marmanjo que tenta tirar vantagem com seu tamanho. Cadernos e canetas no chão, o grandalhão mostra suas garras. Em seguida, humilhado, o menor aparece sentado na sarjeta, sujeito à imposição do colega que conseguiu impor sua “superioridade”. Essa sequência do que hoje é conhecido como bullying nada tem de original. Se repete diariamente em escolas, escritórios e no dia a dia de milhões de pessoas de qualquer lugar do planeta desde que o mundo é mundo – e, segundo relatório da National Association of School Psychologists, faz com que 160 mil crianças faltem à escola todos os dias nos Estados Unidos por medo ou insegurança diante dos bullies. Em casos mais extremos, algumas reagem com violência, como nos mostram os massacres a mão armada cometidos com cada vez mais frequência em escolas até no Brasil.

Junto da saga do menino abusado vem o seguinte texto: “Proteja seu filho contra as torturas da inferioridade. Não deixe que ele entre na luta pela vida em condições desiguais. Sacrifique tudo, mas não deixe que seu filho seja humilhado, pois tais impressões refletem-se na vida adulta”. Parece até propaganda de livro de autoajuda. No fundo, é: trata-se de Introdução ao jiu-jítsu, publicado em 1948 pela editora Pongetti, de autoria de Carlos Gracie, que indica a prática dessa arte marcial para desenvolver a autoconfiança, aprender a se defender e transformar a vida de pessoas. “O jiu-jítsu é de defesa pessoal. Você só adquire autoconfiança quando acredita em si próprio. Qualquer sujeito que aprende fica mais tolerante, porque passa a saber que não apanha”, comentou à Trip #58 Hélio Gracie, irmão 11 anos mais novo e discípulo mais bem-sucedido de Carlos, responsável por trazer de Belém para o Rio de Janeiro na década de 1920 a luta aprendida com o japonês Misuyo Esai Maeda, o Conde Koma, e que hoje tem milhões de praticantes em todo o mundo.

O sucesso dos irmãos Gracie, que em média tinham pouco mais de 1,70 metro e 60 quilos, diante de lutadores de boxe, capoeira, caratê e luta livre, com o dobro do peso e tamanho deles, atraiu a atenção da mídia e do público carioca no fim dos anos 1920. “Se tornaram celebridades por serem franzinos, jovens, parecerem europeus e não terem perfil de lutador”, conta Reila Gracie, filha e biógrafa de Carlos, autora de Carlos Gracie, o criador de uma dinastia (2008, Editora Record). Pouco a pouco, a alta sociedade carioca foi atrás da academia de Carlos para aprender os segredos daquela luta que colocava em condições de igualdade – se não de vantagem – rapazes franzinos diante de brutamontes musculosos.

A lista de alunos famosos chama a atenção. Entre eles, o ex-presidente militar João Figueiredo, o ex-ministro militar Mário Andreazza, jornalistas como Roberto Marinho, Assis Chateaubriand, Samuel Wainer e Carlos Lacerda, o radialista Flavio Cavalcanti, o cantor Nelson Gonçalves, o playboy Jorginho Guinle e o arquiteto Oscar Niemeyer, além de um sem-número de empresários e executivos. “Tive muitas aulas com eles. Gostava muito daquele ambiente”, lembrou Niemeyer em raro depoimento sobre o jiu-jítsu para o programa Sensei SporTV, em 2009, quando faleceu Hélio. “Tive pelo menos um ano de aulas. Meu pai mandou fazer um tatame para a gente. Carlos fingia que perdia, e eu ficava entusiasmado com aqueles golpes todos, achava o máximo”, contou Guinle, em depoimento publicado no livro de Reila. Atualmente, entre os praticantes mais notórios estão Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal, o prefeito de Manaus e ex-senador Arthur Virgílio e os atores Cauã Reymond e Wagner Moura.

Alavanca

Pode soar estranho sugerir o jiu-jítsu para ajudar a resolver problemas de autoconfiança e autoestima em tempos de combates violentos transmitidos pela televisão aberta e relatos de violência gratuita que pipocam diariamente no noticiário. “Muito antes do jiu-jítsu sempre houve covardes. Isso não é arte marcial, é índole. Se você não controla seu próprio instinto, perde pro seu oponente e na vida. Através da eficiência física e da disciplina, fui capaz de formar pessoas mais equilibradas”, disse Rickson Gracie, filho de Hélio e um dos maiores nomes do UFC, à Trip #163.

Exemplo disso é o ator Cauã Reymond. Ele atribui ao jiu-jítsu uma mudança drástica em sua vida. Desde que começou a praticar o esporte, aos 12 anos, ele se diz uma pessoa mais segura. “Tenho uma facilidade em me focar que vejo que outros colegas não têm. Ganhei autoconfiança, autoestima e determinação. O jiu-jítsu te dá uma certeza e uma segurança de que você não precisa dar o passo adiante”, conta o global, que em seu currículo tem dois títulos brasileiros na modalidade.

Nas aulas dadas por Carlos e Hélio, os alunos não eram avaliados apenas pela execução dos golpes, mas também por quesitos como coragem, disciplina, respeito e educação. “O Hélio não aceitava qualquer atitude covarde. Tínhamos uma orientação ética”, conta o psicólogo João Alberto Barreto, aluno e depois assistente de Hélio, um dos poucos no mundo que são donos de uma faixa vermelha na luta, a mais alta graduação do jiu-jítsu, dada apenas aos graduados diretamente com os velhos Gracie. “Hoje em dia o jiu-jítsu está banalizado por conta do MMA. Eu, enquanto professor, não formo lutadores, mas sim ajudo a transformar pessoas”, afirma o publicitário aposentado e professor de jiu-jítsu Flavio Behring, pupilo de Hélio e Barreto, outro faixa vermelha, que sofria de asma e mudou de vida desde que passou a viver na academia Gracie. “No MMA, os lutadores são violentos, querem agredir o adversário. Derrubam com socos e pontapés, enquanto no jiu-jítsu ensinamos as técnicas para fazer isso”, completa Barreto.

Filho mais velho de Hélio, Rorion, 61 anos, levou o jiu-jítsu brasileiro para os Estados Unidos na década de 70 e mantém um museu com o maior acervo sobre a história da família, em Torrance, Califórnia. Em sua academia, ensinou a luta a gente famosa como os atores Mel Gibson e Nicolas Cage, e o jogador de basquete Shaquille O’Neal. Mas é pelas histórias de pessoas comuns que passaram por sua academia que ele gosta de contar o quanto o jiu-jítsu pode transformar uma pessoa. “Tive muitos alunos que passaram nas mãos de psicólogos e não conseguiram se resolver. Vieram aqui e a gente ajudou.” Ele cita o caso de uma aluna policial que tinha pavor de ser atacada por facas e tinha pesadelos com isso. Depois de aprender a lutar, até nos sonhos ela conseguia se defender. “Isso afeta a psique da pessoa. Sua atitude muda, sua personalidade muda. Você se sente mais confiante e isso mexe com tudo”, diz.

Rorion usa o próprio pai como exemplo. “Ele sofria de vertigem e tonturas. Só de subir escadas correndo ele passava mal”, conta. Desautorizado a praticar esportes, ele passou a assimilar a técnica sem colocar a mão na massa, apenas assistindo às aulas do irmão mais velho. Quando isso finalmente aconteceu, reparou que precisaria adaptar o estilo ensinado por Carlos para sua realidade. Sem força, desenvolveu um estilo de luta que consiste no uso de alavancas com o corpo para aplicar os golpes. Uma vez derrubado, o confronto é definido pela imobilização, quando não por sufocamento. “Lutar não significa bater ou apanhar. É possível ganhar de todo mundo com técnica”, disse Hélio à Trip em 2002.

Veja abaixo depoimentos de grandes figuras que integraram a academia dos Gracie.

“Meu pai mandou fazer um tatame para a gente. Carlos Gracie fingia que perdia, e eu ficava entusiasmado com aqueles golpes todos, achava o máximo. Tive pelo menos um ano de aulas. Era uma luta extraordinária. Naquele tempo não se falava em defesa pessoal, e meu pai virou um entusiasta, embora não tenha praticado.” Jorge Guinle, playboy carioca e ex-herdeiro do Copacabana Palace, em depoimento no livro Carlos Gracie, o criador de uma dinastia

“Como era faixa preta de judô, achei que podia treinar com eles. Fui para o chão com Rickson e foi como se nunca tivesse treinado. Depois treinei com Royce e o senhor Gracie [Hélio]. Ele me disse: ‘Chuck, bata em mim’. Só me lembro de puxar meu punho para trás. Fui sufocado, fiquei inconsciente, mal conseguia engolir. Ele pediu desculpas pela força e disse que podia me tornar um grande lutador de jiu-jítsu.” Chuck Norris, ator e lutador, em depoimento ao site MMANation.com

“Tive muitas aulas com o Hélio, com o George, com o Carlos. Era um grupo muito bom, muito fraternal, as aulas eram muito divertidas, faziam muito bem. Recomendo a toda a garotada praticar um pouco de jiu-jítsu.” Oscar Niemeyer, no programa Sensei SporTV

“Eu era um nerd. Jogava videogame o dia todo. meu pai quis que eu praticasse esporte. Comecei com 12 anos e virou quase religião. Ia todo dia à academia, tinha vida de atleta. Isso mudou tudo. Ganhei confiança, autoestima, foco. Hoje me sinto mais seguro. O jiu-jítsu me ensinou a segurança de que você não precisa dar um passo adiante.” Cauã Reymond, ator, faixa preta e bicampeão brasileiro de jiu-jítsu

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