Contra a natureza

por Ronaldo Lemos
Trip #212

Ronaldo Lemos: ”Citar outras criações é requisito para que o conhecimento avance”

"Nada se cria, tudo se transforma" é a essência da nossa cultura. Citar outras criações é requisito para que o conhecimento avance. Por isso, é preocupante que usos legítimos de obras viquem sujeitos a disputas jurídicas.

Em 1958, o economista Fritz Machlup escreveu em um relatório para o Congresso dos EUA que o sistema de patentes “representava a vitória dos advogados sobre os economistas”. Segundo sua visão, ele criava “uma forma de protecionismo” que, na prática, mais punia a sociedade do que gerava valor. Uma das razões para a crítica é que as patentes protegem diretamente as ideias. Se alguém fizer algo protegido por patente, mesmo que a ideia tenha aparecido de forma independente, vai cometer uma ilegalidade.

Essa mesma lógica de proteção fulminante migra agora para o território dos direitos autorais. Mas, diferentemente das patentes, que precisam de registro prévio para existir, os direitos autorais protegem automaticamente, e sem registro, qualquer manifestação de uma ideia (chamada de “criações do espírito” pela lei). Ou seja, no momento em que alguém tira uma foto com o celular, esta já nasce protegida pelo direito autoral. Para utilizá-la, mesmo que seja para fins não comerciais ou acadêmicos, é preciso pedir autorização.

No mundo analógico isso impactava apenas alguns tipos de uso. Ninguém precisava pedir autorização prévia para ler um livro ou para vendê-lo a um sebo. O problema é que, na medida em que nossa vida vai se tornando digital, o direito autoral torna-se onipresente. Basta um passeio pela rede para cometer várias infrações potenciais. Com isso, a não ser que surja um salto de inteligência em todo o sistema, vamos caminhar para um mundo em que mesmo usos completamente legítimos de obras vão precisar de algum tipo de autorização.

Fair use ou violação de direitos?

Um exemplo concreto. Em novembro de 2012 fiz uma palestra em Princeton sobre “delicadeza”. Na minha fala, utilizei trechos de várias obras para ilustrar a minha visão sobre o tema. Por exemplo, uma cena do filme Solaris, de Andrei Tarkovski, com duração de um minuto. Ou um trecho de uma música feita pelo artista Alva Noto com o músico Ryuichi Sakamoto. E também um pedaço do clipe da música “Xirley”, de Gaby Amarantos, a musa do tecnobrega.

Ao colocar o vídeo no YouTube (que tem 38 minutos), o site identificou automaticamente esses trechos e colocou minha conta como suspeita de violar direitos autorais. Imediatamente iniciei uma disputa com o site dizendo que aquele uso deveria ser considerado fair use, ou seja, permitido pela lei. Afinal, tratava-se de citação para fins de comentário e crítica. O mais inacreditável é que o vídeo e a música de Gaby Amarantos são licenciados em Creative Commons, licença que serve exatamente para permitir esse tipo de utilização. No momento em que escrevo este artigo, a “disputa” ainda não foi resolvida (se o vídeo ainda estiver no ar, o link é: http://bit.ly/O548Ib)

O que chama a atenção é que a premissa de que “nada se cria, tudo se transforma” é a essência da nossa natureza cultural. Poder citar e incorporar outras criações é requisito para a criatividade e para que o conhecimento e a cultura avancem. É preocupante que mesmo usos legítimos fiquem sujeitos a um império de autorizações. É uma situação antinatural, que revolta o senso comum. Esse não é só um problema pessoal, mas geral: já recebi inúmeros relatos semelhantes, como dos músicos do Projeto Axial de São Paulo, que licenciaram suas músicas em Creative Commons e mesmo assim outros artistas não conseguem usar trechos delas no YouTube sem receber a mesma pecha de violar direitos autorais.

Ao que tudo indica, caminhamos para o momento em que para usar qualquer conteúdo, mesmo quando permitido pela lei, vai ser preciso iniciar uma “disputa”. Essa é uma nova vitória para os advogados, dessa vez não apenas sobre os economistas, mas sobre toda a sociedade.

*Ronaldo Lemos, 36, é diretor do Centro de Tecnologia da FGV-RJ e fundador do site www.overmundo.com.br. Seu e-mail é rlemos@trip.com.br

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