Ipanema: território livre

por Fernanda Danelon
Trip #176

Bem antes dos paparazzi, Rogério Erlich capturou o nascimento da cultura de praia no Rio

O mate e o biscoito Globo continuam os mesmos, mas muita coisa mudou nas areias do Posto 9. Dono de um acervo de 260 mil negativos do Rio de Janeiro nos anos 70 e 80, a maioria deles focada na juventude dourada que frequentava Ipanema, o fotógrafo Rogério Ehrlich, de 53 anos, consegue resumir em uma frase as transformações da cultura de praia carioca: “Sinto saudades da Ipanema provinciana”, diz o autor das imagens que ilustram esta matéria.
Por provinciana, entenda-se uma Ipanema onde quase todos se conheciam e se deixavam fotografar, ainda não intimidada pela violência e pelos paparazzi. Uma praia na qual surfistas, maconheiros, escritores e jornalistas formavam uma fauna diversificada, mas unida pelo espírito contracultural, ainda sem uma divisão tão rígida por tribos quanto nos tempos atuais.
Claro, era também mais um pedaço de um país encoberto pelas nuvens da ditadura militar. Mas, por uma ironia, foram justamente os militares que ajudaram a instalar em Ipanema o berço esplêndido de uma geração contestadora, ao decidirem construir ali um emissário submarino. Primeiro, a instalação do píer que sustentava o embarcadouro proporcionou o fundo ideal para a formação de grandes direitas tubulares, com ondulações de sul, e frequentes tubos de sonho, com ondulações de leste. Os poucos surfistas de então alucinaram com o novo pico presenteado, bem ali, na esquina de casa. E logo Rico de Souza, Petit, Daniel Sabá, Mudinho, Pepê e sua turma ditavam modas como o cabelo parafinado e os sanduíches naturais.
Depois apareceu a moçada do desbunde. Atraídos pela promessa de liberdade, artistas e intelectuais adotaram o Píer como sua sala de estar. “Tinha uma energia pura, intensa, maravilhosa. Na beira da água rolava surf, filosofia, música, pelada, teatro, sexo, drogas e rock’n’roll. A praia era nossa casa, nossa amante e nossa mãe”, sintetiza o cantor e ator Evandro Mesquita, um dos tantos filhos da zona sul que sonhavam com um estilo de vida alternativo e encontravam em Ipanema o respaldo criativo de que tanto precisavam.
Já Sérgio Mallandro, que antes da carreira de jurado de Silvio Santos foi ator de Menino do Rio e assíduo frequentador de Ipanema, recorda com nostalgia de uma areia bem menos crowdeada. “Eu me lembro que havia uma menina apelidada de Stelinha Bundinha de Ouro, pois foi a primeira a usar fio-dental na praia. A galera já conhecia a história e ficava esperando... Quando ela aparecia, a praia parava pra ver o espetáculo. Era bem diferente. Não havia todas essas barracas de comidas. Agora você vê a mulher, já mistura com o cara ao lado, um monte de gente passando... De repente, sem querer, tá pegando a tiazinha do queijo.”

Aura romântica
Lá se vãos os tempos em que o surf era considerado marginal, muito longe do imenso e lucrativo mercado que é hoje. Mais do que um esporte, surfar era um jeito de levar a vida, um modo diferente de encarar a sociedade, mais ligado à natureza e menos ao consumo. Pioneiros contavam histórias de surf trips lendárias a Bali ou ao Havaí, permeando com certa aura romântica o imaginário da maioria, para quem viajar até Saquarema era tarefa para desbravadores. Natural de Santos, no litoral paulista, o veterano Picuruta Salazar se lembra de quando ir a Maresias também era uma aventura: “Tudo ainda estava meio abandonado naquela época. Hoje construíram um montão de casas em Maresias para o pessoal que tem dinheiro. Mas a gente ia lá surfar por prazer, não existia a ideia de construir alguma coisa”.
Já para Rogério, a aventura era pegar um ônibus no Flamengo, saindo da casa dos pais, com a câmera fotográfica pendurada no pescoço, com destino à praia. “Nessa época, o Daniel Friedman foi competir no Japão e me trouxe uma lente 800 mm, gigante, coisa que nenhum fotógrafo profissional no país tinha. Imagina, se eu aparecer hoje na praia com um equipamento desses, capaz de vir um pitboy e me acertar uma porrada!”, fala Rogério antes de emendar: “Eu não surfava porque alguém tinha que ficar na areia fotografando. E eu colaborava para a pioneira e única revista do gênero, a Brasil Surf”. Rogério também foi o editor da revista Momentos, que durante dez anos chegou gratuitamente à casa do povo descolado do Rio, que queria se ver e ser visto nas páginas em preto e branco. A diversão era se descobrir na seção mais quente, onde uma colagem feita à mão por Rogério reunia os rostos e os corpos mais badalados.
Com o tempo, o Píer foi removido, o surf se profissionalizou, com os campeonatos explodindo no litoral brasileiro, as surf trips se popularizaram, Pepê adotou a asa-delta, a ditadura acabou, o Circo Voador migrou do Arpoador para a Lapa. No fim da década de 80, como um reflexo da atmosfera mítica que se extinguia, Rogério aposentou as fotografias de surf e a coluna social pra se dedicar apenas às fotos de estúdio. “De vez em quando, a velha guarda se encontra no Arpoador e todo mundo tem saudade da liberdade que a gente tinha. Com esse esquema de tecnologia digital, todo mundo se sente fotógrafo e invade a privacidade alheia sem pudor. Pô, hoje, até foto de celular tá valendo.”

* Colaborou Caio Ferretti

 

 

SOBREVOANDO O RIO

Por Carlos Motta*

Há pouco tempo tive a sorte de fazer um voo sobre as praias do Rio de Janeiro. Água e ar estavam cristalinos, numa terça-feira azul; eram 11h30 da manhã e a praia estava cheia.
O carioca sempre soube cultuar a praia, mostrando que é lá que se define o grande espaço público e democrático. Faz pouco tempo vi um programa na TV mostrando como naturalmente as pessoas vão se agrupando na praia, de acordo com seus interesses, tendências, aptidões. Grupos de surfistas, grupos de senhores do voleibol, gente que gosta de fritar ao sol, grupo de senhorinhas, futevôlei, músicos, intelectuais etc. O repórter do programa entrevistou um senhor sarado de 75 anos que joga vôlei diariamente há 60 anos no mesmo lugar. Esse senhor, uma pessoa feliz, comentou como é bom encontrar sempre os mesmos amigos, se relacionar com os diferentes grupos e ser afetivamente dono da praia. Todos são donos da praia.


Sou paulistano, mas grande parte da minha família mora no Rio. Meus avós, tios e primos queridos me atraíam pra lá. Tanto fui e tanto frequentei que passei a ter uma intimidade com a cidade. Tenho lembranças lindas das enormes sombras das amendoeiras no Posto 6, onde eu brincava vendo os pescadores que puxavam a rede. Eles davam os pequenos peixes para a criançada, e depois todos ajudavam a arrastar as canoas para cima da praia.
Assim foi grande parte da infância até o início dos anos 60, quando a capital federal foi transferida do Rio para Brasília. Parte da família se mudou para a nova capital, e eu passei a ir para o Rio com menos frequência e por períodos mais curtos.
No verão de 65-66, comecei a surfar com prancha de madeirit da Procópio, depois prancha de fibra emprestada e finalmente, em 67, minha primeira prancha bacana: uma São Conrado, 9’2”, encomendada diretamente no bairro carioca de São Conrado, na oficina do Parreira. Estreei minha nova prancha no Arpoador com ondas de 3 pés, tudo lisinho, lindo. Tornei-me a pessoa mais feliz do mundo e descobri que surfar e namorar são as duas melhores coisas para fazer neste planeta.
Iniciou-se uma fase maravilhosa de desbravar praias, principalmente as do litoral norte de São Paulo, Juquehy, Cambury, Baleia, Maresias e, em seguida, as surf trips para o Rio, principalmente os inesquecíveis acampamentos em Saquarema.

 

Arena do desbunde
Em 73, namorei a gata carioca Monique M., e as idas para o Rio passaram a ser uma agradável rotina, mesmo passando horas na via Dutra, dentro do meu Opalão. A contracultura corria nas minhas veias junto com LSD, Hendrix, Allan Watts, THC, Lennon, Monique e toda a água salgada do surf.
Na praia de Ipanema, na altura do Posto 9, as areias foram todas remexidas para a construção de um píer que levaria o emissário submarino até o oceano aberto. Parte da areia formou uma espécie de grande duna na praia e parte juntou-se ao píer, deixando o fundo do mar excelente para a formação das ondas. Assim estava formada a arena perfeita para o desbunde da moçada.
A surfistada logo se apossou das dunas e do píer e lá rolou um gathering espontâneo, divertido, vanguardista, que atraiu várias tribos. As encostas das dunas ficavam apinhadas de artistas, músicos, o pessoal do cinema, intelectuais, gatas lindíssimas, muito baseado e muita alegria. As dunas logo foram batizadas “Dunas do Barato” ou “Dunas da Gal”, em homenagem à musa Gal Costa, frequentadora do local.
Surfei muita onda boa e conheci muita gente legal nas areias ensandecidas desse pico de Ipanema. Eu chegava de São Paulo, pegava a Monique e já estávamos no Píer. Parecia que estava chegando a outro país. Um Brasil mais livre, mais pessoal, mais chique e formador de opinião. Chique por ser sincero e coerente com seu estilo. Que já ditava comportamento e moda. Criava gírias e expressões. Promovia encontro de boas cabeças e belos corpos – que, além de curtir a vida, conseguiam produzir filme, literatura, fotos, músicas e outras expressões com o DNA do Píer.
A fama do Píer se espalhou por todo o Brasil e, antes de desmancharem sua estrutura em 1975, a frequência já estava descaracterizada, exagerada em tudo, sem espontaneidade. Foi uma grande perda para o Rio e para todos a retirada do Píer. Foi um grande ganho para o Rio e para todos a curta existência do Píer. A verdade é que tudo muda rapidamente, mas o Rio de Janeiro continua lindo.

* Carlos Motta, 56, é arquiteto

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